A formação do indivíduo, incluindo as características de sua sexualidade, começa primariamente em um contexto social, e somente depois se manifestam suas características individuais, dando origem ao ser único que é. Essa abordagem nos permite compreender as variadas visões, concepções e ideias sobre sexualidade, que podem oscilar entre perspectivas mais libertárias e outras mais tradicionais ou repressoras.
Cada ser humano carrega consigo um conhecimento social e histórico construído ao longo do tempo, e é essencial não apenas relacioná-lo às mudanças do mundo, mas também criar novos significados, conhecimentos, conceitos e comportamentos que o ajudem a se adaptar ao ambiente que o rodeia a partir de sua subjetividade.
A questão da sexualidade se apresenta de forma evidente em diferentes contextos, especialmente durante a infância e adolescência. Entender o desenvolvimento humano sob uma ótica histórico-cultural implica em reconhecer que uma aprendizagem significativa sobre sexualidade não pode se limitar aos aspectos biológicos, mas deve considerar suas dimensões culturais, psicológicas e históricas.
O que é a sexualidade humana
A sexualidade é entendida como uma construção social, como apontado por Foucault. Ele destaca que as concepções sobre nós mesmos em relação ao sexo, inicialmente consideradas como aspectos da “natureza”, foram posteriormente analisadas através de uma lente que considera a história, o significado e o discurso do sexo.
Essa perspectiva sugere que a relação entre desenvolvimento humano, visto sob a ótica histórico-cultural, e sexualidade é baseada na compreensão de que a sexualidade é uma criação social, influenciada por contextos históricos e práticas sociais que promovem estímulos corporais, intensificação de prazeres, fomento de discursos, produção de conhecimentos e fortalecimento de controle sobre resistências.
Portanto, não se pode reduzir a sexualidade no desenvolvimento humano apenas ao aspecto biológico. Conforme observado por Vitiello, embora a reprodução sexual seja uma característica padrão da espécie humana, a sexualidade humana transcende o aspecto puramente biológico, não se limitando apenas a um instinto ligado à reprodução.
Diversas manifestações da sexualidade, como masturbação, voyeurismo, homossexualidade e o prazer sexual desvinculado da atividade reprodutiva, contribuem para manter uma vida sexual ativa, mesmo em períodos inférteis e durante a gestação. Além disso, nossa sexualidade apresenta um componente psicossocial que se sobrepõe e até mesmo supera o aspecto puramente biológico.
Assim, a sexualidade humana é altamente complexa e multifacetada, influenciada por fatores biológicos, como hormônios e genética, bem como por fatores sociais, como cultura, religião, educação e normas sociais. Ela se desenvolve ao longo da vida de uma pessoa e pode ser moldada por experiências individuais, interações sociais e mudanças no ambiente.
É importante reconhecer que a sexualidade humana é diversa e que as experiências e expressões sexuais podem variar significativamente de pessoa para pessoa e ao longo do tempo. Respeitar a diversidade da sexualidade e promover uma educação sexual abrangente e inclusiva são aspectos fundamentais para o bem-estar e a saúde sexual de todos.
Diferença entre gênero e sexualidade
Sexualidade e gênero são conceitos distintos, embora relacionados, que são frequentemente mal compreendidos ou confundidos.
- Sexualidade: Refere-se aos sentimentos, atrações, comportamentos e identidades relacionados à atração sexual e romântica. Envolve quem você se sente atraído(a) emocional, física e sexualmente. A sexualidade pode ser heterossexual (atração entre pessoas de sexos diferentes), homossexual (atração entre pessoas do mesmo sexo), bissexual (atração por pessoas de mais de um sexo), pansexual (atração por pessoas independentemente do gênero), assexual (ausência de atração sexual), entre outras variações.
- Gênero: Refere-se às características sociais, culturais e psicológicas associadas ao ser homem, mulher, ou outras identidades de gênero. É uma construção social que vai além das características biológicas. O gênero pode ser visto como uma experiência interna e pessoal de autoidentificação (identidade de gênero) que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento (identidade de gênero cisgênero ou transgênero, respectivamente).
Portanto, enquanto a sexualidade está relacionada à atração sexual e romântica, o gênero está relacionado à identidade pessoal de ser homem, mulher, não-binário ou outra identidade de gênero, e como essa identidade é expressa e percebida na sociedade. Embora ambos sejam aspectos centrais da identidade pessoal, são conceitos independentes.
Como a Psicologia Histórico-Cultural compreende a Sexualidade
A forma como percebemos o mundo e os seres humanos é profundamente influenciada pela nossa concepção de desenvolvimento humano.
Neste contexto, o desenvolvimento humano engloba não apenas o aspecto biológico, mas também o psicológico e o social. Para entendermos esse processo, é crucial explorar tanto os aspectos naturais quanto os ambientais, assim como a interação entre biologia e cultura, que explicam tanto a consistência quanto a mudança ao longo do desenvolvimento.
Podemos entender o desenvolvimento como um contínuo processo de interação entre as características individuais e o ambiente, visando adaptar-se e evoluir constantemente. É importante aceitar esse processo como não linear, pois ele é influenciado por uma variedade de informações e conhecimentos compartilhados ou específicos de diferentes culturas. No entanto, o desenvolvimento biológico é uma característica comum a todos os indivíduos, independentemente de sua cultura.
Desde o nascimento, o ser humano está imerso em um processo contínuo de construção da sua sexualidade. Ao longo da vida, ele é exposto a uma variedade de conhecimentos e informações, os quais são transmitidos e moldados pelos contextos sociais, culturais e eventos históricos
A maneira como o indivíduo interpreta, infere e compreende esses conhecimentos adquiridos influencia diretamente sua consciência e comportamento em relação à sexualidade. Em resumo, a sexualidade é uma construção complexa que se desenvolve ao longo da vida, influenciada por uma série de fatores e experiências.
A sexualidade é inata?
A discussão sobre se o desenvolvimento humano e a sexualidade são determinados por padrões inatos presentes desde o nascimento ou se é moldado pelas experiências vivenciadas após o nascimento tem sido um tema histórico de debate entre estudiosos. Essas ideias divergentes deram origem a duas principais correntes de pensamento: os nativistas e os empiristas.
Os nativistas, representados por figuras como Platão e, mais tarde, René Descartes, enfatizam a importância da natureza (hereditariedade). Eles acreditavam que tanto traços e características quanto algumas ideias já estavam presentes no indivíduo desde o seu nascimento. Por outro lado, os empiristas, como John Locke, destacavam a relevância da experiência e das influências ambientais. Para eles, a mente humana era como uma lousa em branco onde o conhecimento era adquirido por meio da interação com o ambiente.
No entanto, o avanço nos estudos do desenvolvimento humano aponta para a necessidade de considerar tanto a hereditariedade quanto o ambiente. Ambos contribuem de forma direta ou indireta para o desenvolvimento humano, e essa influência é bidirecional: tanto as pessoas moldam o ambiente quanto são moldadas por ele.
Em outras palavras, e corroborando com a ideia da dialética marxista, à medida que os seres humanos modificam o mundo ao seu redor, também são transformados por ele. Assim, há uma interação constante entre o indivíduo e seu ambiente, influenciando mutuamente o desenvolvimento humano.
Sexualidade, Marxismo e a Psicologia Histórico-Cultural
A teoria do materialismo histórico de Marx foi fundamental para influenciar o pensamento de Vigotski, pois demonstrava que as transformações na sociedade e na vida material resultavam em alterações na “natureza humana”, incluindo consciência e comportamento. De acordo com Vigotski, cada evento está inserido em um contexto histórico e é marcado por mudanças tanto qualitativas quanto quantitativas ao longo do tempo.
Destacando que o aprendizado e o desenvolvimento humano ocorrem principalmente por meio da interação social, Vigotski argumenta a partir da Psicologia Histórico-Cultural que os seres humanos constroem novas maneiras de interagir com o mundo ao seu redor.
Sua teoria pressupõe que o ser humano é um ser biológico, histórico e social, o que torna essa perspectiva a mais coerente para explicar, validar e afirmar que a sexualidade é um processo enraizado na história e na cultura. Isso porque entendemos a sexualidade como algo que se expressa ao longo de todo o desenvolvimento humano, sendo influenciada pelas experiências, vivências e reflexões sobre as significações e intenções sexuais, como defendido pelo marxismo queer.
Movimento dialético da construção da sexualidade
Para Leontiev, os indivíduos, ao se tornarem sujeitos de um processo social, passam a ser influenciados tanto por leis biológicas – que geram transformações morfológicas necessárias para o desenvolvimento da produção e comunicação – quanto por leis sociais, que regem o próprio desenvolvimento da produção na sociedade.
Nesse contexto, percebemos que a construção da sexualidade é predominantemente moldada por aspectos culturais em relação aos biológicos. Embora algumas características relacionadas ao sexo e à sexualidade dependam de fatores biológicos, como o desenvolvimento dos órgãos sexuais e a produção de hormônios, é a mediação dos conceitos, discursos e conhecimentos historicamente construídos sobre sexualidade que molda a formação, a posição e as ações individuais em relação a esse tema.
É importante considerar que o movimento dialético entre leis biológicas e sociais está em constante transformação, com a influência predominante das leis sociais. Os indivíduos, por meio de suas atividades, contribuem para humanizar o mundo, pois é através delas que o mundo material é construído e as habilidades são desenvolvidas e transmitidas às gerações seguintes. O psiquismo humano se desenvolve por meio da atividade social, mediada por instrumentos que facilitam a interação entre o sujeito e o objeto de sua atividade.
Desde o nascimento, os seres humanos são cercados por conhecimentos e informações transmitidos ao longo da vida por meio de práticas sociais. Para que esses conhecimentos sejam internalizados, é necessário que o indivíduo realize atividades significativas que facilitem o acesso e a assimilação desses saberes.
Dessa forma, tanto o conhecimento quanto os tabus, preconceitos e receios em relação à sexualidade são moldados ao longo da história pelo próprio ser humano, de acordo com suas necessidades e objetivos.
Um breve olhar para a história mostra a evolução da sexualidade humana como um processo intrínseco ao materialismo histórico dialético: se no século XIX a sexualidade era vista apenas como um ato para a procriação, mantido em segredo dentro das paredes domésticas, hoje, no século XXI, reconhecemos a importância de abordar a sexualidade de forma aberta e responsável, inclusive na escola, no cinema, na TV e em outros espaços.
Além disso, aspectos religiosos e morais também influenciaram a formulação das ideias sobre sexualidade ao longo da história. A moral agostiniana, por exemplo, restringia a prática sexual à procriação e considerava-a impura. Essas influências religiosas visavam controlar a população e promover a religião católica.
Por isso, o psicólogo histórico-cultural desempenha um papel crucial ao abordar a sexualidade na clínica, pois sua perspectiva reconhece a influência da história e da cultura na formação do indivíduo e na construção de suas experiências sexuais.
Sexualidade na clínica histórico-cultural
Ao compreender que a sexualidade é moldada por contextos sociais e históricos, o psicólogo pode ajudar os pacientes a explorar e compreender suas próprias experiências sexuais à luz dessas influências. Isso implica em desafiar concepções essencialistas e binárias sobre sexualidade, reconhecendo sua complexidade e diversidade.
Além disso, o psicólogo histórico-cultural pode auxiliar os pacientes a identificar e descontruir tabus, preconceitos e estigmas relacionados à sexualidade, promovendo uma visão mais ampla e inclusiva sobre o tema.
Ao mesmo tempo, a prática clínica histórico-cultural pode ajudar os pacientes a desenvolver habilidades para lidar com as pressões sociais e culturais relacionadas à sexualidade, fortalecendo sua autonomia e capacidade de fazer escolhas que estejam alinhadas com seus valores e desejos individuais.
Assim, o psicólogo histórico-cultural tem o papel de criar um ambiente terapêutico que permita aos pacientes explorar sua sexualidade de forma livre, aberta e reflexiva, levando em consideração os aspectos históricos, culturais e sociais que influenciam sua vivência sexual.