Autismo na concepção da Psicologia Histórico-Cultural

Autismo na Psicologia Histórico-Cultural

O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) é uma condição neurológica que afeta o desenvolvimento desde o nascimento ou início da infância, caracterizando-se por uma variedade de sintomas e níveis de comprometimento.

De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), uma das principais referências internacionais para diagnóstico, pessoas com TEA apresentam dificuldades na comunicação e na interação social. Essas dificuldades podem incluir desafios na linguagem verbal e não verbal, bem como na capacidade de estabelecer e manter uma conexão emocional com outras pessoas.

Além disso, o autismo é frequentemente associado a comportamentos repetitivos e restritivos, como movimentos contínuos, interesses intensamente focados em um único tema e reações exacerbadas ou diminuídas a estímulos sensoriais.

É importante destacar que, embora todos os indivíduos no espectro compartilhem todas ou algumas dessas características, a intensidade e a forma como esses sintomas se manifestam variam amplamente. Essa diversidade faz com que cada caso de TEA seja único, exigindo abordagens personalizadas para diagnóstico e tratamento.

Quais são as causas do Transtorno do Espectro do Autismo?

As causas do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) ainda não são completamente compreendidas, mas a ciência tem dedicado grande atenção à investigação da predisposição genética.

Estudos indicam que mutações espontâneas durante o desenvolvimento fetal e a transmissão de genes dos pais para os filhos desempenham um papel significativo. No entanto, evidências mostram que fatores genéticos hereditários representam apenas cerca de metade do risco de desenvolvimento do TEA.

Os fatores ambientais que afetam o feto também têm importância similar. Elementos como estresse materno, infecções, exposição a substâncias tóxicas, complicações durante a gestação e desequilíbrios metabólicos podem influenciar o surgimento do transtorno.

Dessa forma, a interação entre aspectos genéticos e ambientais contribui para a complexidade do TEA e reforça a necessidade de uma abordagem multidisciplinar para sua compreensão.

Psicologia Histórico-Cultural: como compreender o autismo?

Autismo e aspectos sociais de acordo com a Psicologia Histórico-Cultural

A compreensão do autismo e das deficiências de forma mais ampla exige uma análise que vá além da visão puramente biológica, incorporando uma perspectiva social e histórica. 

Desde a década de 1920, Lev Semionovitch Vigotski, renomado psicólogo e teórico do desenvolvimento humano da Psicologia Histórico-Cultural, já discutia as deficiências sob esse viés. Sua filha, Guita Vigodskaia, revelou que Vigotski enxergava as limitações biológicas como apenas uma parte do problema.

Para ele, o verdadeiro desafio estava nas interações sociais — ou na falta delas. Em sua visão, quanto mais adversas as condições sociais, maior seria o isolamento e os impactos negativos sobre a pessoa com deficiência. Ele acreditava que qualquer criança, independentemente de ter ou não alguma deficiência, deve ser vista primeiramente como uma criança, cujo desenvolvimento é moldado pelas oportunidades de convivência e inclusão social.

Atualmente, essa visão ganha eco nas vozes das próprias pessoas com deficiência e no movimento autista, que rejeitam a patologização excessiva de suas características e os preconceitos associados.

Estudos demonstram a crescente resistência a estigmas e uma busca por novas formas de entender e lidar com o autismo de maneira construtiva e respeitosa.

Com essa perspectiva, é essencial investigar o autismo por meio de uma análise teórica que aborde sua evolução conceitual, amparada pela psicologia histórico-cultural desenvolvida por Vigotski e outros estudiosos. Só assim é possível compreender o autismo em toda a sua complexidade, considerando suas múltiplas determinações e o contexto histórico que molda a experiência dos indivíduos na sociedade.

PHC: o autismo entre suas bases biológicas e sociais

A Psicologia Histórico-Cultural oferece um olhar abrangente e detalhado para a compreensão das pessoas com autismo, partindo de uma base biológica que se integra de maneira complexa às relações sociais e culturais.

Um dos pontos centrais dessa teoria é a ideia de que as funções psíquicas naturais se transformam em funções psíquicas superiores através da intervenção histórico-cultural, um processo mediado pela interação com outros e pela significação do mundo.

O aprendizado ocorre por meio de conceitos e signos que ajudam a interpretar os fenômenos e a própria identidade. Essa mediação envolve tanto instrumentos materiais quanto simbólicos, refletindo um movimento dialético que molda a formação psíquica e cultural dos indivíduos ao longo de suas fases de desenvolvimento e de suas situações sociais específicas.

A abordagem também enfatiza a importância de criar novas ferramentas e estratégias que possam abrir caminhos alternativos de aprendizado, além de ressaltar as condições sociais que permitem a formação de novas zonas de desenvolvimento proximal e formas de compensação para superar desafios. O contato com uma variedade de experiências coletivas é fundamental para o desenvolvimento de uma personalidade completa, integrando emoção e intelecto.

Vigotski, em suas reflexões de base spinozista e marxista, argumentava que a humanidade não é uma condição com a qual nascemos, mas sim um estado que alcançamos por meio da convivência e das interações sociais. Os sujeitos constroem sua identidade e compreensão do mundo a partir das múltiplas interações sociais, que são mediadas por símbolos e signos culturais.

A personalidade de uma pessoa só se forma plenamente quando ela entende como os outros a percebem e se relacionam com ela, conforme Vigotski destacou: “relaciono-me comigo mesmo como as pessoas se relacionam comigo”.

Esse entendimento é crucial para refletir sobre a significação do autismo na formação da identidade de uma pessoa. O desenvolvimento humano, segundo Vigotski, é um processo dinâmico e não linear, caracterizado por mudanças, reorganizações, e até retrocessos, em um equilíbrio instável que se assemelha a uma espiral, revisitando e transformando o ponto de partida a cada ciclo.

Esse processo envolve um confronto entre o biológico e o cultural, onde ambos os planos se entrelaçam em uma integração única que molda a constituição humana.

A lei genética geral do desenvolvimento cultural explicita essa transição, marcada por conflitos entre o natural e o histórico, o primitivo e o cultural, o orgânico e o social. Vigotski via o desenvolvimento como uma unidade ativa e complexa, na qual as partes se interrelacionam e são influenciadas tanto pela hereditariedade quanto pelo meio ambiente.

Em suma, o ser humano é um “sistema único” — um ente social, cultural e simbólico — e o desenvolvimento, seja ele típico ou atípico, pressupõe a constante formação do novo.

Aspectos sociais do autismo

Diferencial da Psicologia Histórico-Cultural na compreensão do autismo

De acordo com a abordagem histórico-cultural, a compreensão da deficiência deve ser analisada sob uma perspectiva social, uma vez que a percepção de ser “deficiente” só ocorre no contexto das interações humanas. A maneira como uma sociedade se organiza e reage frente às diferenças é que define se uma característica particular será ou não vista como deficiência.

A interrupção orgânica por si só não provoca automaticamente a exclusão; seu impacto é amplificado pela resposta social, que frequentemente relega certos grupos à marginalização, resultando em efeitos emocionais e comportamentais para as pessoas com deficiência.

Um exemplo marcante dessa visão é a forma como diferentes culturas lidam com a cegueira. Em algumas sociedades, a falta de visão física não é considerada uma limitação, mas sim um símbolo de uma visão espiritual mais aguçada. Essa interpretação positiva confere um status social elevado aos cegos, mostrando que o conceito de deficiência não é universal, mas sim uma construção social moldada pelas condições culturais e históricas.

Para ilustrar essa ideia, pode-se considerar a incapacidade humana de voar. Biologicamente, não temos asas, mas essa característica não é vista como um defeito. A humanidade superou essa limitação por meio da invenção de tecnologias que nos permitiram não apenas voar, mas alcançar a lua.

Isso demonstra que a natureza humana não precisa ser subjugada por limitações biológicas; em vez disso, a criatividade e a adaptação permitem que superemos desafios por meio da criação de instrumentos e soluções inovadoras.

Vigotski trouxe uma perspectiva transformadora e libertadora ao romper com os conceitos tradicionais de normalidade e com a ideia de deficiência como mero déficit biológico. Ele criticou o modelo médico que avalia as pessoas a partir de suas limitações físicas, sem levar em conta os fatores sociais que moldam a personalidade e influenciam a busca por reconhecimento e inclusão.

Para ele, a lei do desenvolvimento humano é única, embora se manifeste de maneiras distintas. Vigotski afirmou que uma criança com algum tipo de deficiência não é simplesmente uma versão menos desenvolvida de seus pares, mas sim uma pessoa que se desenvolve de forma diferente e única.

Baruch Spinoza complementa essa visão ao afirmar que a perfeição de qualquer ser deve ser avaliada por sua própria natureza e capacidade, e não por critérios externos baseados nas percepções humanas.

No Ocidente, os pensamentos revolucionários de Vigotski sobre deficiência e desenvolvimento humano demoraram a ser reconhecidos, em parte devido a uma estrutura social centrada em valores mercantilistas e segregacionistas. Essa visão atrasou a adoção de uma abordagem mais social e inclusiva sobre a deficiência, perpetuando modelos que priorizam comparações quantitativas em detrimento de um entendimento mais abrangente e humano.

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