O ciúme é uma das emoções humanas mais conhecidas — e frequentemente mal compreendidas. Para algumas pessoas, ele parece uma reação natural e até “prova de amor”. Para outras, é uma força destrutiva que consome relações e produz sofrimento. Mas o que, afinal, é o ciúme? E como ele se forma?
Para entender um pouco melhor essa questão, proponho uma análise do ciúme a partir da psicologia histórico-cultural, abordagem desenvolvida por Lev S. Vigotski e aprofundada por autores como Luria e Leontiev.
Diferentemente das explicações que naturalizam o ciúme como “instinto”, a psicologia histórico-cultural nos ajuda a compreender essa emoção como uma construção histórico-social, mediada pela cultura, pela linguagem e pela atividade humana.
“Ciúme é normal?”: desmistificando o fator natural do ciúme
Muitas vezes ouvimos que o ciúme é “inevitável”, “biológico”, ou “faz parte do ser humano”. Essa visão é reforçada tanto pelo senso comum quanto por certas correntes da psicologia que atribuem às emoções um caráter inato, universal e imutável. Contudo, a psicologia histórico-cultural contesta essa ideia.
Para Vigotski (1999), as emoções humanas não são apenas respostas orgânicas a estímulos externos. Elas se desenvolvem historicamente, em meio às relações sociais e às práticas culturais. Emoções como o ciúme, portanto, não são “dados naturais”, mas construções que emergem em contextos específicos e são moldadas pelas formas de vida, pelas instituições e pelos discursos de cada época.
Uma das contribuições fundamentais da psicologia histórico-cultural é a distinção entre funções psicológicas elementares (biológicas, naturais) e superiores (culturais). O ciúme, nesse sentido, pode ser entendido como uma função psicológica superior: ele não é um simples reflexo, mas um fenômeno complexo, mediado pela linguagem, pelos signos sociais e pela consciência (VIGOTSKI, 2020).
Alexandre Luria (1979), colega de Vigotski, descreve as emoções como sistemas que se articulam com a história do sujeito e com os significados sociais compartilhados. Ou seja, sentir ciúme implica interpretar uma situação, atribuir-lhe um valor, envolver-se afetivamente com objetos simbólicos (o parceiro, a relação, a fidelidade) e agir de acordo com normas culturais interiorizadas.
Ciúme como construção social e moral
Do ponto de vista histórico-cultural, o ciúme só pode ser compreendido em articulação com os valores dominantes em uma determinada sociedade. Em culturas onde a monogamia e a posse sobre o outro são incentivadas — especialmente em contextos patriarcais — o ciúme tende a ser legitimado, romantizado e até incentivado como uma “virtude amorosa”.
Na sociedade capitalista ocidental, o ciúme muitas vezes se associa a relações de propriedade. O outro é visto como “meu”, e sua autonomia pode ser vivida como ameaça. Essa visão não nasce com o indivíduo, mas é aprendida ao longo da vida, através da linguagem, da mídia, da educação e das experiências afetivas.
Como afirma Leontiev (2004), os motivos e significados das emoções se transformam conforme a atividade do sujeito se modifica. Assim, o ciúme pode ser diferente em uma criança, em um adolescente e em um adulto, porque cada fase implica diferentes relações sociais e formas de significar os vínculos afetivos.
A psicologia histórico-cultural também aponta que os afetos são atravessados por ideologias. Isso significa que o ciúme não é apenas uma emoção privada, mas um fenômeno que expressa contradições sociais e políticas.
Por exemplo, o ciúme masculino, muitas vezes visto como “normal”, pode expressar relações de dominação e controle sobre a mulher. Ele pode ser naturalizado como “instinto de proteção”, quando na verdade reflete normas patriarcais que colocam o outro como objeto de posse e controle. Esse aspecto foi explorado por autores contemporâneos críticos da psicologia tradicional, como Silvia Lane (1984), que destacou como o afeto não é neutro, mas expressão das relações sociais de poder.

Como tratar o ciúme patológico? Dicas da psicologia histórico-cultural para lidar com o ciúme
Na psicologia histórico-cultural, as emoções não são tratadas como meras reações instintivas, nem como expressões de uma estrutura inconsciente imutável. O ciúme, assim como outras emoções, é entendido como uma experiência mediada pela cultura, linguagem e relações sociais. Portanto, sua transformação passa pelo desenvolvimento da consciência — não como uma tomada de consciência isolada, mas como parte de um processo ativo de reorganização subjetiva.
Na clínica histórico-cultural, o trabalho do psicólogo não é reduzir o ciúme a um traço de personalidade, nem rotulá-lo como sintoma patológico. O psicólogo atua como agente da mediação — isto é, alguém que promove, através da linguagem e do vínculo, a construção de sentidos mais amplos sobre a experiência emocional do paciente (FARIA & GOMES, 2025).
A partir disso, o processo clínico pode envolver:
- Investigar a história de vida do sujeito, explorando como o ciúme foi vivido nas relações primárias (com pais, irmãos, amigos) e nas experiências afetivas ao longo da vida.
- Identificar os valores e significados atribuídos ao amor, à posse e à exclusividade que estão implicados na vivência do ciúme.
- Analisar as contradições vividas pelo sujeito, como, por exemplo, desejar liberdade e ao mesmo tempo exigir controle sobre o outro.
- Desnaturalizar o ciúme, mostrando como ele se relaciona com normas culturais e ideologias sociais (como o patriarcado, o capitalismo, o modelo da família tradicional etc.).
Esse trabalho não é feito por meio de conselhos ou técnicas de controle emocional, mas sim por meio de um processo dialógico de significação, no qual o paciente é incentivado a se apropriar criticamente de sua experiência.
Como o psicólogo histórico-cultural pode mediar uma situação de ciúme
Aqui estão algumas estratégias que profissionais que atuam sob essa perspectiva podem utilizar no contexto de uma terapia histórico-cultural:
a) Acolher sem moralizar
Muitas pessoas sentem vergonha ou culpa por sentir ciúme. O primeiro passo é criar um espaço de escuta onde a emoção possa ser expressa sem julgamento. Isso não significa validar atitudes possessivas ou violentas, mas reconhecer o ciúme como algo que merece ser compreendido, e não reprimido.
b) Contextualizar socialmente o sofrimento
Explique ao paciente que o ciúme não é apenas “dele”, mas tem raízes em modelos sociais aprendidos — como a ideia de que o amor verdadeiro exige exclusividade absoluta, ou que o parceiro deve “provar” amor restringindo sua liberdade. Essa contextualização ajuda a tirar o peso da culpa individual e a abrir espaço para a crítica social.
c) Explorar os sentidos construídos na linguagem
Use perguntas que estimulem a reflexão sobre o que está por trás do ciúme:
“O que você teme perder quando sente ciúmes?”
“Como você aprendeu que uma relação amorosa deve ser?”
“De onde vêm as ideias de ‘traição’ ou ‘fidelidade’ que te afetam hoje?”
Essas perguntas ajudam o paciente a perceber que o ciúme está carregado de significados culturais e experiências passadas — e que esses sentidos podem ser transformados.
d) Acompanhar a construção de novos sentidos
Não basta entender o ciúme — é necessário criar condições para que o sujeito se aproprie de outros modos de amar, de confiar, de viver o afeto. Isso implica:
Trabalhar a autovalorização e a autonomia emocional.
Fortalecer a capacidade de diálogo e de escuta no relacionamento.
Desenvolver estratégias concretas de enfrentamento do medo, da insegurança e da desconfiança.
e) Relacionar o ciúme à atividade do sujeito
Pergunte: em que situações o ciúme aparece? O que o sujeito está fazendo, pensando ou vivendo? Isso permite compreender o ciúme como parte de uma atividade maior — afetiva, relacional, histórica — e não como um estado fixo.
Segundo Leontiev (2004), toda emoção está ligada à atividade do sujeito em relação a um objeto que tem valor para ele. Assim, compreender a “atividade afetiva” permite reconstruir os motivos do ciúme e oferecer caminhos de transformação.
Ciúme: cura ou transformação?
O ciúme, longe de ser um instinto universal, é uma emoção complexa, construída historicamente nas relações sociais. A psicologia histórico-cultural nos oferece ferramentas teóricas e práticas para compreender como ele se forma, como se expressa e como pode ser transformado a partir da atividade consciente do sujeito.
Na clínica histórico-cultural, o objetivo não é eliminar o ciúme como se fosse um “sintoma”, mas ampliar a consciência que o sujeito tem sobre si, sobre o outro e sobre a sociedade em que vive. É transformar o modo como ele se relaciona com suas emoções, tornando-se agente de sua própria história.
Como afirma Vázquez (1977), a práxis envolve a capacidade de agir conscientemente sobre o mundo e a si mesmo. A clínica, nesse sentido, é um espaço privilegiado de práxis — onde o sujeito pode reconstruir sua vida emocional a partir de novos sentidos e novas formas de se relacionar.
Defender essa abordagem é apostar numa clínica comprometida com a emancipação e com a crítica às estruturas sociais que produzem sofrimento psíquico. É entender que transformar o ciúme não é apenas uma tarefa individual, mas parte de um projeto coletivo de transformação das relações humanas.

Referências
FARIA, A. P. V.; GOMES, C. A. V. Práxis clínica na psicologia histórico-cultural: um estudo de teses e dissertações brasileiras. Revista de Psicologia, Fortaleza, v. 16, e025003, 2025.
LANE, S. T. M. Psicologia social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1984.
LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro, 2004.
LURIA, A. R. Curso de psicologia geral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
VIGOTSKI, L. S. Teoria e método em psicologia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
VIGOTSKI, L. S. Obras escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique. Madri: Visor, 2020.