Consumo abusivo de drogas: como a Psicologia Histórico-Cultural entenda esse problema

Uso abusivo de drogas

A abordagem da psicologia histórico-cultural oferece uma lente única para entender o consumo abusivo de drogas, situando-o dentro do contexto mais amplo das interações sociais, culturais e históricas.

Ao invés de focalizar apenas no indivíduo e suas características pessoais, essa perspectiva considera as influências do ambiente social e das estruturas de poder na formação de comportamentos problemáticos, como o uso excessivo de substâncias.

A psicologia histórico-cultural oferece uma visão mais completa e contextualizada do consumo abusivo de drogas, destacando sua ênfase na mediação cultural, na atividade social e na história compartilhada como determinantes fundamentais desse fenômeno complexo.

O que são drogas?

Para entendermos a visão da Psicologia Histórico-Cultural sobre o tema, é importante definirmos o que são as drogas.

Basicamente, drogas são substâncias químicas que, quando introduzidas no organismo, têm a capacidade de alterar seu funcionamento físico, mental ou emocional. Elas podem ser classificadas em diferentes categorias, como drogas lícitas (legalmente disponíveis, como álcool, tabaco e medicamentos) e drogas ilícitas (proibidas por lei, como cocaína, maconha e heroína).

Além disso, as drogas podem ser categorizadas de acordo com seus efeitos, como estimulantes, depressoras ou alucinógenas. O uso de drogas pode variar desde o uso terapêutico, em que são prescritas por profissionais de saúde para tratar condições médicas específicas, até o uso recreativo ou abusivo, que pode levar a consequências adversas para a saúde física, mental, social e emocional.

Uso abusivo de drogas: como a psicologia histórico-cultural compreende esse problema

Visão dialética sobre o consumo abusivo de drogas

Ao conceber o ser humano como um conjunto de relações sociais internalizadas, o modelo histórico-cultural busca estabelecer uma nova compreensão da relação epistemológica entre o sujeito e o objeto de conhecimento. Enquanto o modelo mecanicista coloca ênfase no objeto e o modelo organicista prioriza o sujeito, o modelo histórico-social introduz o princípio da interação dialética entre sujeito e objeto, partindo do pressuposto de que essa interação é mediada pelas significações do grupo social ao qual o sujeito pertence.

Devido ao princípio da interatividade e mediação social, a abordagem afetivo-cognitiva, intrinsecamente ligada à subjetividade social, reconhece que todos os aspectos da relação entre o indivíduo e a droga, incluindo os aspectos biológicos, são influenciados e moldados pela sociedade e pelas interações interpessoais.

Em outras palavras, essa abordagem destaca que os efeitos e significados do consumo de drogas são filtrados através das lentes da cultura, das normas sociais e das relações pessoais, afetando tanto a percepção individual quanto os resultados comportamentais relacionados ao uso dessas substâncias.

Significado social da droga

O conceito de mediação social (e semiótica), proposto por Vigotski, destaca que todas as funções mentais humanas típicas, como o pensamento, a linguagem e a atenção dirigida, têm sua origem nas interações entre pessoas (interpsíquicas), para depois serem internalizadas (intrapsíquicas). Nessa perspectiva, os problemas associados ao álcool e outras drogas não podem ser analisados apenas como manifestações primárias do organismo individual.

A partir do conceito de mediação social, é possível questionar a visão comum que relaciona o consumo de drogas ao prazer proporcionado por suas propriedades químicas. Na realidade, os relatos das primeiras experiências com drogas nem sempre envolvem sensações prazerosas.

Muitas vezes, os usuários descrevem sensações como mal-estar, ansiedade, medo, perda de controle, entre outras, ou até mesmo não sentem nada. O que caracteriza os efeitos das drogas, especialmente no início do uso, não é necessariamente o prazer, mas sim o significado social atribuído às sensações resultantes das mudanças químicas no cérebro.

Esse significado social pode influenciar ou modificar a percepção do usuário sobre as sensações decorrentes dos efeitos físicos tangíveis das drogas. Por exemplo, em uma festa, um adolescente pode sentir-se compelido a beber não pelo gosto ou prazer da bebida, mas pela necessidade de se desinibir socialmente, a fim de corresponder às expectativas de seu papel social. Para outro indivíduo, a mesma sensação de desinibição proporcionada pela bebida pode significar vergonha de se expor negativamente.

Da mesma forma, a mesma sensação de perda de “noção de tempo e espaço” causada pela maconha pode ser experimentada como uma experiência prazerosa para alguns usuários, enquanto para outros pode gerar pânico e medo. Portanto, a experiência do usuário ao consumir uma droga depende muito mais do processo social de atribuição de significado do que dos efeitos da droga em si mesma.

Como a psicologia histórico-cultural compreende o uso das drogas

Na perspectiva histórico-cultural, a droga pode ser entendida como um “signo”, comparável aos signos linguísticos, em termos de sua utilização, aprendizagem, domínio e representação neurológica.

Assim como acontece com as palavras, o indivíduo adquire o significado do signo/droga por meio da mediação social. A aprendizagem tanto do signo-droga quanto do signo-linguístico envolve aspectos afetivo-cognitivos, culturais e sociais, influenciando a formação de redes neuronais e padrões de funcionamento cerebral específicos.

Como qualquer signo, a “droga” interfere nas funções psíquicas superiores, alterando a organização da mente, inclusive no nível consciente-volitivo, relacionado à vontade e à autodeterminação do sujeito.

A comparação da droga com o signo também permite estabelecer princípios para a prevenção e tratamento, evitando a aprendizagem e sedimentação da “linguagem-droga” com significados como liberdade pessoal, prazer, felicidade, entre outros.

A significação da droga é adquirida pelo sujeito antes mesmo de seu uso experimental e recreativo, sendo compartilhada desde a infância por meio da mídia, costumes sociais e exemplos familiares. Estudos mostram que o início precoce do uso de drogas aumenta o risco de dependência.

Na recuperação do dependente, o objetivo é mediar a coconstrução de outras formas de linguagem, tornando a “linguagem-droga” dispensável para o paciente, o que requer o fornecimento adequado de assistência e apoio, com motivos socialmente significativos para a adoção de uma “nova linguagem”.

Uso abusivo de drogas: como a psicologia histórico-cultural entende o tratamento

Tratamento de pessoas com relação abusiva de drogas e outras substâncias

O principal objetivo do psicólogo histórico-cultural é proporcionar ao paciente a oportunidade de reconstruir internamente sua autorregulação e adotar novas formas de interação com a realidade. Para alcançar esse objetivo, é crucial estabelecer medidas efetivas de inter-regulação o mais cedo possível.

Além desses princípios, é relevante destacar diretrizes provenientes de outras abordagens que estão alinhadas com a proposta deste texto, como as expressas pelo NIDA – NATIONAL INSTITUTE ON DRUG ABUSE (EUA). Não há um único tratamento adequado para todas as pessoas. A diferença geralmente não está em uma técnica ou método isolado, mas sim na combinação de intervenções, no ambiente apropriado e na oferta do tipo e nível de assistência que atendam às necessidades individuais do paciente.

Tratamento não voluntários também podem ser eficazes. Experiências nacionais e internacionais mostram que o início do tratamento pode ser motivado por pressões do sistema judicial, da família e do ambiente de trabalho.

O processo de tratamento não é linear ou mecânico; é dinâmico e dialético, com avanços e retrocessos. Para ser eficaz, o tratamento requer que o paciente permaneça nele por um período adequado, que pode variar de pessoa para pessoa. Os benefícios terapêuticos geralmente começam a ser percebidos após cerca de três meses de participação no programa, momento a partir do qual os progressos tendem a ser mais significativos.

No entanto, muitos pacientes abandonam o tratamento prematuramente, antes dos três meses. Portanto, é fundamental direcionar todos os esforços e estratégias para manter a adesão do paciente ao programa.

Em muitos casos, o tratamento pode incluir medicamentos como um componente importante, combinado com outras modalidades terapêuticas.

Pontos importantes na compreensão do consumo abusivo de substâncias

Por fim, vale destacar alguns pontos que devem ser lembrados quando pensamos no tratamento de pessoas em situação de abuso de substâncias, sejam elas as drogas mais convencionais ou até mesmo outros tipos:

  • O vínculo entre o indivíduo e a droga é sempre influenciado pelas mediações sociais;
  • Ter acesso a tratamento de qualidade é um direito fundamental à vida e à saúde;
  • O nível de assistência terapêutica varia de acordo com cada situação individual;
  • Para indivíduos que enfrentam tanto problemas de abuso ou dependência de drogas quanto transtornos mentais, é crucial abordar essas questões de forma integrada;
  • A desintoxicação médica representa apenas a primeira fase do tratamento e, por si só, tem impacto limitado na modificação do uso de drogas a longo prazo;
  • A recuperação do vício em drogas pode ser um processo de longo prazo e muitas vezes requer múltiplos ciclos de tratamento.

A relação abusiva com drogas pode ser transformada com a Psicologia Histórico-Cultural

A abordagem histórico-cultural apresenta-se como uma perspectiva promissora no estudo, prevenção e tratamento dos problemas relacionados ao uso de drogas.

Essa abordagem não apenas incorpora os conhecimentos produzidos por outras linhas e abordagens, mas também os reinterpreta à luz da dialética marxista, centralizando-se no papel fundamental da mediação social na formação do sujeito e reconhecendo que o contexto social exerce uma influência significativa na maneira como os indivíduos percebem, compreendem e respondem ao uso de drogas.

Conheça meu trabalho como psicólogo histórico-cultural
Raphael Granucci Pequeno
Raphael Granucci Pequeno

Psicólogo clínico da abordagem histórico-cultural, escritor e pesquisador

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