Influência de Espinosa em Vigotski e na Psicologia Histórico-Cultural

Qual a influência de Espinosa em Vigotski e na Psicologia Histórico-Cultural?

Baruch Spinoza, nascido em 1632 e falecido em 1677, é amplamente reconhecido como um dos filósofos mais influentes da era moderna. Descendente de uma família judaica portuguesa que se estabeleceu na Holanda, Espinosa (como seu nome também pode ser grafado em português) emergiu como um expoente do racionalismo, desafiando as tradições filosóficas estabelecidas de seu tempo.

Seu trabalho não apenas deixou uma marca indelével na história do pensamento ocidental, mas também influenciou profundamente uma gama diversificada de campos, desde a filosofia até a política e a ética, passando pela psicologia.

Lev Vigotski, ao pensar a sua Psicologia Histórico-Cultural, foi profundamente influenciado por Espinosa. 

Para o psicólogo, a trajetória do desenvolvimento do indivíduo não é governada por um livre arbítrio intelectual desvinculado das emoções. Assim, Vigotski rejeita a ilusão perpetuada por Descartes de que a vontade pode controlar “as paixões como um navegador que gerencia um navio danificado”.

Para Vigotski, é ainda mais importante conseguir explicar como “não apenas a capacidade de sofrer, de se alegrar e de ter medo não desaparece como um fenômeno acidental e anormal, mas como ela cresce e se desenvolve com a história da humanidade e o desenvolvimento da vida interior do homem“.

De acordo com Vigotski, “são precisamente as paixões que constituem o fenômeno fundamental da natureza humana”.

“Nosso objetivo é criar até mesmo os primeiros fundamentos de uma teoria psicológica dos afetos […] digna de se tornar um dos capítulos da psicologia humana, talvez até mesmo seu capítulo principal”.

Vigotski
Quem foi Espinosa e qual sua influência n psicologia histórico-cultural?

Espinosa e Vigotski: a paixão na clínica histórico-cultural

Espinosa está nas bases epistemológicas da psicologia histórico-cultural. Em “A História do Desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores” há mais de dez menções ao filósofo. Além disso, Vigotski cita classicamente Espinosa: “Ninguém, é verdade, determinou até agora o que o corpo pode fazer“.

É por isso, e especialmente porque Vigotski não enxerga antagonismo entre a vida intelectual e a vida afetiva do ser humano, que ele busca apoio em uma “grande ideia filosófica”: ele acredita, arriscando-se a criar expectativas elevadas, que a teoria spinozista das paixões é tão “sólida e afiada” que suportará os desafios a serem enfrentados na psicologia e “os resolverá como um diamante corta o vidro”.

Corpo e espírito

Motivado pela crítica à abordagem das emoções na psicologia de sua época, Vigotski nunca fez uma distinção clara entre afeto, emoção e sentimento, embora tenha adotado de Espinosa uma perspectiva deliberadamente voltada para a ação. Ele reuniu dados empíricos para demonstrar as virtudes da emoção para a ação, observando “a influência dinamogênica das emoções, que elevam o indivíduo a um nível mais alto de atividade”.

Vigotski viu nisso uma confirmação das ideias de Espinosa na Ética, que concebe afetos como estados corporais que aumentam ou diminuem a aptidão do corpo para a ação, influenciando-a favoravelmente ou restringindo-a, e também as ideias que temos desses estados.

Ele explicou que no afeto, os componentes psíquicos e somáticos se encontram de modo que, no ponto de sua intersecção, nasce o verdadeiro distúrbio emocional. Em períodos de grande excitação, ele observou que muitas vezes sentimos um poder colossal, onde a excitação e a sensação de força se fundem, liberando energia que estava anteriormente em reserva.

O psicólogo russo então enfatizou que o somático e o psíquico são componentes entrelaçados do afeto, uma “tendência a agir em uma determinada direção”, como afirmou Ribot, citado por ele, que descreveu o afeto como um “evento traduzido em duas línguas”.

Essa composição afetiva, segundo Vigotski, não é uma simples soma de reações, mas uma predisposição para ação. Ele concordou com o comentário introdutório de Zavialoff à Teoria das Emoções, que comparou a emoção à percepção na ordem intelectual e reconheceu tanto na “lógica racional” quanto na “lógica afetiva” processos de antecipação e conjectura, de passagem do conhecido para o desconhecido.

Sem se concentrar especificamente nas inter-relações entre afetos, emoções e sentimentos, Vigotski examina o movimento dessa composição afetiva da atividade sob a perspectiva de uma “mudança geral na vitalidade”. Ele entende isso como um aumento ou diminuição do poder de agir. Nesse sentido, ele se aproxima mais de Spinoza, especialmente em relação à sua crítica ao dualismo corpo-mente.

Para Vigotski, o desenvolvimento do relacionamento entre corpo e mente ocorre quando a vitalidade da atividade é invocada, quando a atividade é afetada. Nesse momento, ocorre a transição de um para o outro, quando o efeito se torna a causa e vice-versa. Durante o desenvolvimento do afeto, a vitalidade muda sua base.

É o afeto que redistribui as funções do corpo e da mente de acordo com uma causalidade que não é mais mecânica, mas histórica. Em outras palavras, o afeto passa pelo corpo e pela mente, mas não se origina deles. Ele pertence a uma atividade que está constantemente em conflito, focalizada simultaneamente em seu objeto e na atividade dos outros em relação a esse objeto.

Espinosa e a Psicologia Histórico-Cultural: a centralidade da atividade

A atividade é influenciada “em sua jornada do conhecido para o desconhecido”, e é nesse ponto que o sujeito encontra a fonte das oscilações em sua vitalidade, desde a intensidade mais forte até a maior passividade. É também aqui que Vigotski encontra paralelos com Espinosa: no afeto, definido como uma variação do poder.

Espinosa descreve os afetos como a maneira pela qual a força de cada indivíduo varia, mais ou menos, em resposta aos eventos que ocorrem, e de acordo com sua capacidade de transformar essas experiências em atividade. Transformar paixões em ação, ou vice-versa, é a função do afeto, que é conceituado como uma transição, uma oscilação entre o desconhecido e o conhecido: um equilíbrio de poder no qual a vitalidade da atividade é renovada ou deteriorada.

O que ultrapassa as experiências anteriores do indivíduo – suas expectativas – na atividade viva, com todo o seu elemento de surpresa, é sinalizado pelo afeto. Portanto, a teoria do sujeito de Vigotski rejeita uma subjetividade que seja autônoma e separada da atividade vital. Ela se opõe à ideia de uma substância que ameaça constantemente a definição do sujeito psicológico.

Parafraseando Maxime Rovere sobre Espinosa, poderíamos dizer que, ao invés de ser subjugada pela ordem infinita das causas, a subjetividade constitui um meio de se apropriar dos efeitos. Poderíamos até argumentar que, paradoxalmente, é através desse processo que o desejo é liberado no curso da atividade.

Essa perspectiva se entrelaça com o conceito de regeneração de Espinosa: “Para se manter, o corpo humano necessita de uma quantidade significativa de outros corpos pelos quais é constantemente regenerado”.

Esse esforço contínuo de regeneração, chamado pelo filósofo de conatus, restabelece um equilíbrio que está sempre sendo testado e que, como observado por Étienne Balibar, é “imediatamente destruído se não for continuamente reconstituído”.

A regeneração, que pode falhar, é mediada pelo afeto. Assim, sua teoria nos indica que “todo indivíduo que age sobre os outros ou sofre por meio dos outros (pois os dois estão necessariamente ligados) é de alguma forma colocado ‘fora de si'”. No entanto, essa interação não deve ser concebida como um confronto direto entre dois indivíduos indivisíveis. O modelo spinozista de construção do indivíduo segue uma causalidade originalmente transindividual.

Afeto e atividade em Espinosa

Atividade na Psicologia Histórico-Cultural

Da mesma forma que para Espinosa, para Vigotski a atividade prática e psicológica constitui a menor unidade de troca social que nos influencia incessantemente, sujeitando-nos às “variações de poder” denominadas pelo filósofo como afeto. O processo de individuação ocorre por meio da socialização, que impacta as atividades umas às outras, gerando uma miríade de afetos que resultam em “flutuações” na capacidade de agir, movimentos de desenvolvimento ou impedimento.

Vigotski enfatiza que a consciência não é um estado mental separado, uma “entidade dentro de uma entidade”, mas sim uma relação concreta, produtiva e impulsionadora entre a atividade em curso e as experiências prévias.

Em sua obra “Pensamento e Linguagem”, de 1934, ele distingue entre a “consciência de sentimento e a consciência pensante” para destacar que o pensamento não surge de outro pensamento, mas sim das bases reais, afetivas e volitivas da atividade. Vigotski ressalta que qualquer tentativa de separar pensamento e afeto nega a possibilidade de explicar as origens do próprio pensamento.

Ao mesmo tempo, em seu importante estudo sobre o “retardo mental”, ele observa que ao dissociarmos o pensamento da vida, estamos privando o pensamento de seu papel primordial, que é influenciar nosso modo de vida, alterar nossas ações e nos libertar das restrições da situação concreta.

O legado de Espinosa na Psicologia Histórico-Cultural

Na psicologia histórico-cultural, podemos evitar a dicotomia entre internalismo e externalismo. A atividade de pensar não é um processo exclusivamente privado, mas uma interação dinâmica com o ambiente social. Apesar disso, Espinosa não rejeita completamente a interioridade subjetiva, como demonstrou Pascal Séverác ao destacar que a preocupação com a interioridade não equivale ao solipsismo.

Para pensar verdadeiramente por si mesmo e tornar-se único, é essencial não pensar isoladamente. Conforme Mikhail Bakhtin ressalta, para tomar liberdade com relação ao convencional, é necessário primeiro explorá-lo. Essa virada permite a verdadeira liberdade, que se manifesta contra e além das convenções estabelecidas. Da mesma forma, a auto-organização do sujeito não exclui sua determinação; o transpessoal e o interpessoal não eliminam o pessoal, mas o complementam.

Em termos políticos, Espinosa enfatiza a importância dos coletivos na regeneração dos indivíduos. Os coletivos, enquanto mantidos incompletos fora dos indivíduos, permitem que cada um se defina. Assim, a política é vista como um processo de devir singular dos indivíduos juntos, e os coletivos sociais são vistos como entidades singulares, mais ou menos estáveis, formadas pela ação coletiva dos indivíduos.

Laurent Bove introduz o conceito de “conatus político” democrático para descrever a essência dinâmica da realidade coletiva. Esse processo envolve a regeneração ou degeneração do coletivo por meio do confronto de forças e opiniões. O conflito não é o objetivo, mas sim o meio de perseverar em uma democracia onde o que já é compartilhado é menos relevante do que o que ainda não é compartilhado.

Em suma, tanto na psicologia histórico-cultural quanto na política, a regeneração dos indivíduos e dos coletivos é crucial para a manutenção da singularidade e da liberdade. O poder instituinte só se realiza se for institucionalizado e se submeter a um processo constante de retificação.

Conheça meu trabalho como psicólogo histórico-cultural
Raphael Granucci Pequeno
Raphael Granucci Pequeno

Psicólogo clínico da abordagem histórico-cultural, escritor e pesquisador

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