O luto na Psicologia Histórico-Cultural

O luto e a psicologia histórico-cultural

Escrever sobre a morte e o luto implica, seja pela Psicologia Histórico-Cultural (PHC) ou qualquer outra abordagem, enfrentar o desafio de lidar com a perda. Diante da dificuldade de encontrar palavras adequadas, é necessário criar significados, desenvolver abordagens e conceber terminologias para compreender essas experiências profundas.

Por outro lado, embora haja aspectos da morte e do luto que são indescritíveis, também é inegável que essas experiências têm uma dimensão concreta. A morte e o luto afetam diretamente nossos corpos, causando dor, emoções, envelhecimento, doenças, amor e vida. Em última análise, como afirmou Guimarães Rosa, a morte é uma prova de que vivemos.

Em nossa jornada de vida, nossos corpos estão enraizados em um contexto histórico e social específico, e somos moldados por nossa posição nesse contexto. Portanto, a morte e o luto também são influenciados por nossas experiências concretas relacionadas a classe social, raça, gênero e localização geográfica.

Uma vez que cada um de nós é um indivíduo único, nossa vivência e nossa passagem para a morte são únicas e variam de pessoa para pessoa. Contudo, vivendo em uma sociedade moldada por desigualdades intrínsecas ao sistema capitalista, nossas experiências de vida e morte são profundamente marcadas por disparidades.

Quando tentamos aplicar padrões europeus de morte e luto a todos, estamos, na verdade, perpetuando a ideia de que a branquitude é a identidade racial padrão e ignorando completamente as experiências de morte e luto das comunidades negras e das áreas periféricas do Brasil.

Quando nos defrontamos com o processo inevitável de finitude que é a morte, tendemos a recorrer a palavras de aceitação e conformidade. No entanto, quando somos confrontados com a morte que abruptamente ceifa vidas de forma violenta e injusta, meras palavras não são suficientes. Nesses casos, é necessário criar novos verbos, tomar medidas concretas, e amplificar vozes de revolta e indignação em resposta a essa tragédia.

O que é o luto?

O luto é uma resposta emocional e psicológica à perda significativa de algo ou alguém que era importante na vida de uma pessoa. Geralmente, o luto está mais associado à morte de entes queridos, mas também pode ser experimentado em resposta a outras formas de perda, como o término de um relacionamento, a perda de um emprego, a partida de um amigo próximo, a morte de um animal de estimação, entre outras situações de despedida ou separação.

O processo de luto envolve uma variedade de reações emocionais, cognitivas e físicas, que podem incluir tristeza, choque, negação, raiva, culpa, confusão e uma série de outras emoções. Cada pessoa vivencia essa experiência de maneira única, e não existe uma maneira “certa” de lidar com ele.

O luto é um processo individual e pode durar um período variável, podendo se estender por semanas, meses ou até mesmo anos, dependendo da intensidade da perda e da capacidade de adaptação do indivíduo. É importante procurar apoio e cuidados quando se está passando por esse processo, pois pode ser uma fase desafiadora da vida.

Como a Psicologia Histórico-Cultural lida com o luto na terapia?

Luto no DSM-V

Ao longo da evolução das edições do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), houve uma significativa mudança na forma como o luto foi abordado. Na primeira edição do DSM, o termo “luto” não era mencionado. No entanto, no DSM-5, publicado em 2013, o termo aparecia em mais de 130 referências.

Ao longo das diferentes edições, ele foi abordado de várias maneiras, sendo considerado como uma condição cultural, um diagnóstico diferencial, um critério de exclusão, uma condição concomitante ou agravante de transtornos mentais.

A partir do DSM-3, em 1980, passou a ser classificado nas “Condições Não Atribuíveis a Transtornos Mentais que São Foco de Atenção Clínica” (Código V). No entanto, no DSM-5, o luto foi removido dos critérios de exclusão para transtornos depressivos, o que permitiu o diagnóstico de depressão em pessoas enlutadas e, consequentemente, sua medicalização.

Além disso, ele foi categorizado como um transtorno na Seção III do DSM-5, sob a denominação de “Transtorno do Luto Complexo e Complicado“, e foram estabelecidos critérios diagnósticos, prevalência, curso, fatores de risco, diagnóstico diferencial, comorbidades e prognóstico, incluindo a identificação do “luto traumático“.

Esse processo representou uma transformação radical na abordagem do luto pelo DSM, indo de sua ausência na primeira edição para sua patologização nas edições mais recentes.

Dimensões do luto: questões sociais, históricas e culturais

É crucial reconhecer que, ao longo deste caminho, não apenas a morte como um processo natural de término da vida se manifesta, mas também o ato de morrer influenciado por fatores sociais. Isso inclui mortes causadas pela ação ou omissão do Estado, pela falta de acesso a cuidados de saúde, pela violência, pelo racismo estrutural, por questões de gênero, pelo descaso em relação a problemas de saúde e pelo diagnóstico tardio.

Apesar das notáveis desigualdades sociais observadas na prática de cuidados de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), a questão da desigualdade social raramente era abordada nas discussões teóricas sobre morte e luto na Psicologia.

Em outras palavras, as teorias discutidas nos ambientes de formação deixavam lacunas evidentes diante da realidade concreta que enfrentávamos na prática profissional. Esse descompasso entre o que era produzido nas pesquisas de Psicologia e o que era vivenciado na prática pelos psicólogos estava relacionado à adoção acrítica e desprovida de contexto de modelos teóricos europeus e norte-americanos.

No campo de estudos sobre a morte e o luto, é importante reconhecer que evitar a discussão da desigualdade social não é apenas uma falha teórica, mas também um reflexo de privilégios associados à raça e classe social.

Optar por ignorar essas questões e, de fato, silenciá-las e ocultá-las, contribui para a normalização das opressões e a consolidação dos privilégios. Abordar esse tema inevitavelmente gera tensões e exige uma reflexão crítica sobre as limitações, contradições e erros em nossa atuação nesse campo.

Lutos diferentes para mortes diferentes

Dependendo da causa e das circunstâncias que envolvem a morte, como mortes súbitas ou aquelas resultantes de doenças crônicas e degenerativas, a capacidade de lidar com o luto pode variar em termos de dificuldade ou facilidade.

Essas observações têm respaldo na literatura científica e são aplicáveis a situações de perda com vínculos afetivos, podendo ser utilizadas como base para análises. Conforme destacado por Maria Julia Kovács, no caso de mortes súbitas e inesperadas, esses eventos podem gerar desorganização, paralisação emocional e sensação de impotência em indivíduos enlutados, o que pode tornar o processo de luto mais desafiador.

Por outro lado, quando se trata de mortes de pacientes gravemente enfermos, pode ocorrer o que é chamado de “luto antecipatório”, onde o processo de luto começa antes mesmo da morte, permitindo uma antecipação na elaboração da perda.

A autora ressalta que esses casos podem evocar sentimentos ambivalentes naqueles que cuidam do paciente, como o desejo de que a pessoa faleça para aliviar o sofrimento de ambos, ao mesmo tempo em que experimentam sentimentos de culpa por ter esse desejo.

Psicoterapia do luto: a “cura” pela fala

A vida sofre uma profunda transformação quando se atravessa o processo de luto. O mundo que antes era dado como certo se altera significativamente, e as interpretações e significados que tínhamos anteriormente deixam de fazer sentido. Nesse contexto, surge a necessidade de reconstruir não apenas a identidade, mas também a própria vida, ajustando-a às novas circunstâncias e realidades que o luto trouxe consigo.

“O pensamento não se exprime na palavra, mas nela se realiza, podendo, muitas vezes, o pensamento fracassar, não se realizando como palavra”

Vygotsky

O luto é um processo que envolve a construção de significados em resposta à quebra de um vínculo significativo. Com base no contexto social e histórico, é importante distinguir entre significado e sentido, pois a compreensão do luto requer a apreensão dos sentidos e significados que as pessoas que passam por essa experiência constroem.

Os significados, de acordo com Vygotsky, são criações que evoluem ao longo da história e da sociedade, embora mantenham uma certa estabilidade, o que permite a comunicação e compartilhamento entre as pessoas. Eles representam conteúdos estabelecidos, mais estáveis e compartilhados, que são reinterpretados pelos indivíduos de acordo com suas próprias subjetividades.

Os sentidos, por outro lado, estão relacionados às particularidades historicamente moldadas e são mais abrangentes do que os significados. Eles articulam a dimensão psicológica de cada pessoa com sua experiência da realidade, refletindo como cada indivíduo interpreta e responde ao luto de forma única.

Por isso, dentro de um setting terapêutico da Psicologia Histórico-Cultural, é importante investigar os sentidos e significados, trabalhando na construção e reconstrução dessas ideias e expressões para a elaboração do luto de uma maneira saudável e plausível na vida dos pacientes.

Raphael Granucci Pequeno
Raphael Granucci Pequeno

Psicólogo clínico, escritor e pesquisador

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