Psicologia e gênero: a importância do conceito na prática clínica

Psicologia e gênero: uma prática clínica inclusiva, feminista e queer

Psicologia e gênero estão bastante interligados. Afinal, os estudos de gênero e o entendimento de como um gênero é construído muitas vezes se baseiam nos trabalhos produzidos por psicólogos e psicólogas, além de estarem em constante diálogo.

Na intrincada teia das relações humanas, a Psicologia desempenha um papel vital na compreensão das complexidades do ser humano. Um aspecto que ganha crescente relevância na prática clínica é a consideração cuidadosa do gênero.

Vamos entender como o conceito de gênero está se tornando cada vez mais essencial na psicologia clínica e como os profissionais estão adotando abordagens mais sensíveis às questões de gênero em seu trabalho.

Gênero e a relação histórico-cultural

Conforme afirmado por Joan Scott, o conceito de gênero representa uma construção histórica e social de extrema importância, que serve como alicerce na organização da sociedade, naturalizando as hierarquias de poder que favorecem os homens em detrimento das mulheres e, ao mesmo tempo, moldando as disparidades sociais.

Para compreender completamente esse fenômeno, é necessário abordá-lo de maneira holística, levando em consideração fatores como classe e etnia, entre muitos outros que relacionam psicologia e gênero.

A autora argumenta que, ao explorar o sistema de significados e a construção das identidades de gênero, é fundamental transcender as visões binárias tradicionais sobre a sexualidade humana. Isso implica em reconhecer a capacidade do indivíduo de se identificar de maneira bissexual, enquanto se opõe às normas heteronormativas que são impostas pela sociedade.

Para alcançar uma transformação do atual modelo de organização social, é crucial reconhecer o gênero como uma das principais ferramentas para atribuir significado às dinâmicas de poder. Além disso, compreender suas origens se torna essencial para promover mudanças nas instituições que legitimam essas desigualdades, tais como a religião, a família, o sistema educacional, as disciplinas acadêmicas, as políticas públicas e o sistema jurídico.

Como o gênero é compreendido pela psicologia

Primeiramente, é importante ressaltar: Psicologia e gênero podem abarcar diferentes visões e ideias, que muitas vezes irão se contrapor e contradizer. Por isso, é essencial partir de um ponto específico, incorporando também uma psicologia LGBTQIAPN+.

Neste artigo, assim como na minha prática clínica e na maneira de enxergar as situações do dia a dia, falo a partir da abordagem histórico-cultural e me aproprio da produção de Judith Butler e da Teoria Queer para pensar a questão do gênero dentro da psicologia.

Judith Butler introduz uma perspectiva intrigante em relação à identidade de gênero: ela argumenta que não existe uma identidade de gênero preexistente por trás das maneiras como as pessoas expressam seu gênero. Em vez disso, Butler sugere que a identidade de gênero é construída por meio da performance, ou seja, pelas próprias formas como as pessoas expressam seu gênero, que por sua vez são vistas como os resultados dessa construção.

Em outras palavras, Butler desafia a ideia de que existe uma identidade de gênero fixa e intrínseca a uma pessoa desde o nascimento. Em vez disso, ela propõe que o gênero seja uma construção dinâmica que se forma e se mantém através das maneiras como as pessoas se comportam, se apresentam e se relacionam socialmente em termos de gênero.

Assim, a identidade de gênero não é algo que existe independentemente das ações e expressões das pessoas, mas sim algo que é constantemente moldado e reafirmado por essas ações e expressões.

Psicologia e Butler

Judith Butler introduz uma perspectiva intrigante em relação à identidade de gênero: ela argumenta que não existe uma identidade de gênero preexistente por trás das maneiras como as pessoas expressam seu gênero.

Em vez disso, Butler sugere que a identidade de gênero é construída por meio da performance, ou seja, pelas próprias formas como as pessoas expressam seu gênero, que por sua vez são vistas como os resultados dessa construção.

Em outras palavras, Butler desafia a ideia de que existe uma identidade de gênero fixa e intrínseca a uma pessoa desde o nascimento. Em vez disso, ela propõe que o gênero seja uma construção dinâmica que se forma e se mantém através das maneiras como as pessoas se comportam, se apresentam e se relacionam socialmente em termos de gênero.

“O gênero não deve ser construído como uma identidade estável ou um locus de ação do qual decorrem vários atos; em vez disso, o gênero é uma identidade tenuemente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos. O efeito do gênero se produz pela estilização do corpo e deve ser entendido, consequentemente, como a forma corriqueira pela qual os gestos, movimentos e estilos corporais de vários tipos constituem a ilusão de um eu permanentemente marcado pelo gênero.”

Judith Butler

Assim, a identidade de gênero não é algo que existe independentemente das ações e expressões das pessoas, mas sim algo que é constantemente moldado e reafirmado por essas ações e expressões.

De acordo com a perspectiva de performance de gênero apresentada por Judith Butler, o gênero é essencialmente uma construção linguística, uma invenção que se desenvolve ao longo do tempo por meio das práticas sociais e dos costumes que transformam essas invenções em regras aparentemente naturais e inquestionáveis.

Butler argumenta que as ações relacionadas ao gênero são reveladas por meio de expressões comunicativas, como a escolha de roupas, comportamentos, linguagem e até mesmo a seleção de um parceiro para atividades sexuais. Portanto, é a repetida comunicação desses modelos inventados para o gênero que os reforça e garante sua manutenção ao longo do tempo.

Em outras palavras, o gênero não é algo intrínseco ou predefinido, mas sim uma construção social que é continuamente moldada e transmitida através das formas como as pessoas se expressam e se relacionam. Essas práticas sociais e comunicações repetidas ao longo do tempo acabam solidificando as normas de gênero, fazendo com que elas pareçam parte natural do mundo, quando na verdade são produtos da cultura e da linguagem.

Psicologia e relações de gênero

Ao analisarmos mais profundamente a base teórica que sustenta a construção das identidades, podemos observar que a cultura e o pensamento predominantes no mundo ocidental têm uma tendência a impor ordem sobre o aparente caos do universo por meio de uma lógica que visa identificar e racionalizar para estabelecer um sistema de organização entre psicologia e gênero.

Essa lógica, que é eficaz ao aplicar-se a objetos do mundo, nos leva a questionar se os seres humanos se ajustam da mesma forma a essa lógica. Judith Butler, ao investigar essa questão, percebe que a categorização de gênero opera de maneira semelhante à categorização de objetos, ou seja, com base na aparência.

Na sociedade, a aparência que historicamente tem sustentado as identidades de gênero está intrinsecamente ligada à aparência física do corpo. Seguindo essa lógica, os atributos do feminino são frequentemente associados aos indivíduos que nascem com órgãos genitais femininos, enquanto os atributos do masculino são associados àqueles que nascem com órgãos genitais masculinos.

No entanto, Butler argumenta que o gênero vai além de uma simples identificação individual, estética ou performance. É mais do que isso; é um conjunto de marcadores que se desenvolveram historicamente dentro de uma estrutura de dominação baseada no sexo biológico.

O gênero, então, é visto como um sistema de dominação que perpetua a inferiorização e a opressão das fêmeas humanas pelos machos, tratando-os como se pertencessem a uma casta social inferior. Nesse sentido, o gênero não se restringe apenas a uma questão de identidade individual, mas está profundamente enraizado em estruturas sociais de poder que mantêm a desigualdade de gênero.

Psicologia e gênero: como entender o gênero dentro da psicologia histórico-cultural?

Gênero, identidade e feminismo

As feministas da última geração trouxeram questionamentos importantes em relação às teorias essencialistas e totalizantes que prevaleciam nas gerações anteriores no que diz respeito ao conceito de gênero. Anteriormente, o “gênero” era definido com base no “sexo” como uma categoria natural, binária e hierárquica, sugerindo a existência de uma essência naturalmente masculina ou feminina profundamente arraigada na subjetividade humana.

O termo “totalizante” era usado para descrever a ideia predominante de que existia apenas uma única essência estável e homogênea para ser homem ou mulher. Enquanto “sexo” referia-se aos aspectos biológicos, “gênero” era compreendido como uma construção cultural moldada pelas diferenças biológicas. Isso era conhecido como o “sistema sexo-gênero.”

No entanto, na terceira geração do feminismo, essas perspectivas foram contestadas. A noção de gênero deixou de ser ancorada em diferenças biológicas ou conceitos “naturais” e passou por um processo de (des)naturalização, sendo muito importante para a relação entre psicologia e gênero.

A ideia binária de dois sexos e dois gêneros foi revista, e o gênero passou a ser entendido como uma categoria relacional e política. Ele se manifesta principalmente em um contexto discursivo e histórico de relações de poder. Incorporando influências pós-estruturalistas e desconstrucionistas, Judith Butler conceituou o gênero como um “ato performático” – uma expressão que é produzida e gerada.

Essa definição destaca a noção de processo e a construção singular de cada indivíduo, ocorrendo em um campo situado de possibilidades que é constantemente moldado através de “performances” sucessivas, ou seja, práticas concretas. O gênero é, portanto, visto como uma construção social, uma invenção que não se baseia em essências naturalizadas, mas sim em processos sociais e individuais de constituição de identidade de gênero.

Para Butler:

“Quando falamos numa crítica da identidade, não significa que desejamos nos livrar de toda e qualquer identidade. Pelo contrário, uma crítica da identidade interroga as condições sob as quais elas se formam, as situações nas quais são afirmadas, e avaliamos a promessa política e os limites que tais asserções implicam. Crítica não é abolição.

Por fim, faz grande diferença se alguém toma “ser uma lésbica” ou “ser um judeu” como fundamento ou base de todas as suas outras visões políticas, ou se, ativamente, compreende que as categorias são historicamente formadas e ainda estão em processo. Então, minha perspectiva é a de que não é útil basear todas as demandas políticas de alguém em uma posição de identidade, mas faz sentido levantar, como uma questão política explícita, como as identidades foram formadas, e ainda são construídas, e que lugar elas devem ter num espectro político mais amplo.”

Judith Butler

Violência de gênero na clínica

Ao pensarmos em psicologia e gênero, também precisamos pensar em violências. Afinal, a violência é um comportamento que se desenvolve a partir da aprendizagem e da influência cultural, muitas vezes erroneamente considerada como inerente à natureza biológica humana.

Ela se manifesta de maneira complexa, apresentando diversas facetas, o que torna essencial um estudo minucioso, bem como a desconstrução e superação desse fenômeno. Essas ações devem ocorrer no âmbito das interações cotidianas de uma sociedade específica, levando em conta o contexto em que a violência se originou.

Como a psicologia e gênero são vistas pela abordagem histórico-cultural

Existem diversas formas em que a psicologia histórico-cultural crítica pode ajudar a construir uma compreensão melhor e mais saudável na relação entre psicologia e gênero.

Desconstruindo estereótipos: A prática clínica está evoluindo para desconstruir estereótipos e considerar as experiências individuais.

Impacto nas doenças mentais: Questões de gênero afetam a saúde mental, com taxas de depressão e ansiedade mais altas em mulheres, homens e pessoas não-binárias mais propensos a transtornos por uso de substâncias, por exemplo.

Identidade de gênero e orientação sexual: A identidade de gênero e orientação sexual são aspectos importantes na prática clínica, exigindo apoio à autoaceitação e exploração de identidades diversas.

Violência de gênero e trauma: A violência de gênero é uma preocupação significativa, e psicólogos clínicos desempenham um papel fundamental no apoio a vítimas e na reconstrução de suas vidas após trauma.

Sensibilidade cultural: A psicologia de gênero requer sensibilidade cultural, pois as experiências LGBTQIAPN+ podem variar com base na cultura de origem, exigindo compreensão das diferenças.

Promovendo a igualdade de gênero: A psicologia clínica também contribui para promover a igualdade de gênero, desafiando normas prejudiciais e fomentando relacionamentos mais igualitários.

Psicologia e gênero: uma abordagem (trans)feminista e queer

Enquanto as abordagens terapêuticas tradicionais tendem a se apresentar como neutras do ponto de vista político, as terapias feministas  (e transfeministas) assumem um compromisso explícito com a mudança política. Enquanto as terapias tradicionais se concentram em fatores internos para entender o sofrimento psicológico, as terapias feministas direcionam sua atenção para os fatores contextuais, especialmente as desigualdades e a opressão, como as causas subjacentes das dificuldades individuais e familiares.

Enquanto as terapias tradicionais buscam principalmente a adaptação e a conformidade dos indivíduos e famílias aos papéis tradicionalmente prescritos, as terapias feministas questionam e problematizam esses papéis e normas de gênero. Ao invés de estabelecer relações de poder e conhecimento muito desiguais entre terapeutas e clientes, as terapias feministas, baseadas também na psicologia decolonial, valorizam os conhecimentos individuais e as experiências singulares das pessoas, reconhecendo e respeitando as diversas perspectivas e minimizando ao máximo as disparidades de poder e conhecimento presentes na relação terapêutica.

Dentro do contexto das terapias feministas, podemos classificar a terapia histórico-cultural crítica, que se concentra em revelar e denunciar os mecanismos e processos que perpetuam a subordinação das mulheres. Ela se opõe à normalização patriarcal das dinâmicas familiares e prioriza os fatores contextuais em vez de construtos intrapsíquicos na compreensão dos processos de vitimização e opressão enfrentados pelas mulheres.

Em vez de apenas lidar com a sintomatologia resultante desses processos, as terapias feministas buscam validar as experiências das mulheres e outros dissidentes de gênero, como pessoas trans e não-binárias, ajudando-as a reconhecer suas habilidades e competências.

Além disso, orientam essas pessoas na busca de recursos comunitários e legais relacionados aos seus direitos, promovendo o empoderamento dos dissidentes de gênero e auxiliando no desenvolvimento de estratégias de resistência diante de discriminações e violências que possam enfrentar.

Raphael Granucci Pequeno
Raphael Granucci Pequeno

Psicólogo clínico, escritor e pesquisador

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