A Psicologia Marxista pode solucionar um dos graves problemas que o setor enfrenta hoje em dia: a cafetinagem dos nossos desejos pelo neoliberalismo, criando demandas clínicas incessantes e individualizadas.
Durante seu percurso como disciplina científica e campo profissional, a psicologia tem enfrentado uma série de desafios que surgiram principalmente devido às características que moldaram sua evolução ao longo da história. Estes desafios também estão relacionados às mudanças ocorridas em sua prática profissional e às discussões sobre seu papel na sociedade, seja em relação ao trabalho, ao gênero ou outras questões.
Embora essas questões não tenham afetado uniformemente todos os profissionais da área, há um consenso interno de que a psicologia, como qualquer ciência, precisa continuar gerando novos conhecimentos e construindo referenciais teóricos capazes de lidar com as novas demandas e os novos sujeitos psicológicos que emergem em um mundo onde nossa interdependência nunca foi tão evidente, mas ao mesmo tempo, nos sentimos cada vez mais distantes uns dos outros.
O projeto de uma psicologia marxista
A sociedade contemporânea nos leva a depender cada vez mais dos produtos e serviços criados por outras pessoas, no entanto, paradoxalmente, essa interdependência vem acompanhada de um sentimento crescente de alienação em relação a nós mesmos e aos nossos semelhantes.
Fundamentando-se no conceito de que o sujeito/indivíduo são abstratos e atemporais, com influências associadas ao domínio do inconsciente, genética ou experiência pessoal, a Psicologia demorou para encarar o ser humano em sua completude.
Para uma disciplina científica que, por muito tempo, se fundamentou na premissa de um conceito de sujeito/indivíduo como uma entidade abstrata e atemporal, cujas influências eram principalmente associadas ao domínio do inconsciente, genética ou experiência pessoal, lidar com questões relacionadas à maneira pela qual uma sociedade estrutura-se para assegurar a produção dos recursos necessários à sua contínua reprodução social, permaneceu por muitas décadas como um contexto pouco explorado pelos profissionais da psicologia.
Uma das saídas para essa situação é a visão marxista unida à Psicologia, dando origem à psicologia marxista. Diversas abordagens da Psicologia adotam a visão de Marx, denominada como um método materialista histórico-dialético (como se vê em algumas correntes da psicologia social).
Além disso, há o enfoque na construção do ser humano por meio do trabalho, como se observa na psicologia sócio-histórica. Outra abordagem é a assimilação de princípios da teoria marxiana, que são ampliados por meio da introdução de categorias não contempladas por Marx, como o caso do marxismo queer.
Um grande e bem sucedido exemplo é Vygotsky, cujo pensamento fundamenta a psicologia histórico-cultural junto a Leontiev e Luria.
Ademais, a psicologia da libertação também emerge como uma tendência crítica no âmbito psicológico, incorporando princípios marxistas e expandindo-os em novas direções.
Psicologia Marxista e o Trabalho
Todas as atividades humanas surgem a partir de escolhas entre alternativas, ou seja, posições práticas que têm uma orientação teleológica. Essas posições práticas, através da dinâmica inerente à práxis social, gradualmente evoluem para complexos mediadores que se tornam cada vez mais integrados à sociedade. Essas mediações constituem a substância concreta e específica tanto das individualidades quanto das formações sociais como um todo.
O trabalho, enquanto alicerce ontológico do ser social, representa a base indispensável para toda a processualidade reprodutiva. Ao mesmo tempo, a existência real do trabalho se dá apenas dentro do contexto da reprodução social. Esses processos ocorrem simultaneamente, uma vez que o ser social é viável e continua sua existência somente por meio de uma contínua interação com a natureza.
A consciência, em termos ontológicos, encontra sua viabilidade exclusivamente no contexto humano e possibilita a consciente distinção entre sujeito e objeto. Isso transcende o estado epifenomênico que caracteriza a consciência animal, conduzindo-nos a compreender que a categoria de alternativa se estabelece como determinante, conduzindo a transição da potencialidade para a realidade.
Assim, a abordagem teleológica do trabalho é notável por sua natureza cognitiva, que faculta a diferenciação entre necessidade – também presente no reino animal – e satisfação. Esta última é conduzida por um comportamento conscientemente direcionado, sobrepondo-se à espontaneidade do instinto biológico.
Essencialmente, o trabalho não apenas altera a causalidade, mas também transforma a própria condição humana, inaugurando uma relação singular de intercâmbio orgânico com a natureza. Isso engendra uma dinâmica sujeito-objeto que é inatingível em outras esferas. Portanto, a relação sujeito-objeto é uma ocorrência exclusiva na esfera do ser social, emergindo através da atividade laboral e algo muito importante para a psicologia marxista.
Psicologia Marxista possível e necessária
Mais do que uma mera perspectiva individual, o marxismo engendra uma abordagem renovada para identificar, delinear e definir a essência humana. A ontologia proposta por Marx se diferencia das outras ontologias devido à sua natureza social, e introduz na psicologia um conhecimento inovador que contrasta com as ontologias já estabelecidas no campo, como a fenomenológica. Nesse sentido, atribui ao trabalho, à história e à interação entre seres humanos as mediações cruciais para a formação da individualidade.
Consequentemente, a fundamentação material da ontologia marxista contrasta com a idealidade e a experiência da ontologia fenomenológica, apresentando uma abordagem distinta.
A individualidade carece de uma base imutável e não está dissociada do contexto material e histórico. Sua formação está interligada, e como tal, encontra expressão nos anseios, emoções, caprichos e em todas as formas de sentimentos que um indivíduo manifesta em relação a si mesmo, aos outros indivíduos e ao mundo. O psicólogo marxista deve pensar isso em suas atuações.
Psicologia Marxista Histórico-Cultural
A psicologia histórico-cultural, ao adotar os princípios da teoria social marxiana e da psicologia marxista, deve analisar seus focos de estudo à luz da totalidade histórica, marcada pela contradição essencial entre capital e trabalho, com suas ramificações concretas tanto no aspecto material quanto subjetivo. Isso revela a ilusão de isolamento do indivíduo que é biologicamente autoformado, mas cuja atuação na sociedade é apenas um fator secundário.
A existência do indivíduo é intrinsecamente histórica, sendo que a humanidade se define pela intervenção na natureza e pela construção do ser humano através do trabalho, contribuindo para a formação da sociedade em que vive.
Portanto, é um desafio para a psicologia abandonar a visão estereotipada que trata os fenômenos internos como desconectados da realidade que os origina. Em vez disso, deve reconhecer que esses fenômenos estão enraizados na complexa sociabilidade humana, na qual o indivíduo e sua individualidade são aspectos fundamentais.