A psicologia é, muitas vezes, vista como uma ciência do cuidado, da escuta e do acolhimento. Mas nem sempre foi assim — principalmente quando falamos da relação entre psicologia e sexualidade.
Durante boa parte do século XX, pessoas homossexuais foram internadas em hospitais psiquiátricos, submetidas a terapias aversivas, eletrochoques, uso forçado de hormônios e até lobotomias, tudo isso com o aval de discursos psicológicos que viam a homossexualidade como doença.
Sim, a psicologia já colaborou com a exclusão, o sofrimento e a violência institucional contra pessoas LGBTQIAPN+. E é justamente por isso que precisamos encarar essa história, para não repeti-la.
Como a psicologia ajudou a criar a ideia de “homossexualidade como doença”
Com o surgimento da psicologia e da psiquiatria como ciências modernas, no final do século XIX, surgiram também novos modos de classificar os comportamentos humanos. Não mais a partir da moral religiosa (como pecado), mas sim a partir de critérios científicos que se pretendiam neutros e objetivos.
Foi nesse contexto que a homossexualidade passou a ser entendida como “desvio”, “inversão” ou “degeneração” sexual. Um dos nomes mais influentes nesse processo foi o médico alemão Richard von Krafft-Ebing, que em sua obra Psychopathia Sexualis (1886) descreveu a homossexualidade como uma anomalia mental, reforçando a noção de que o desejo por pessoas do mesmo sexo era sinal de doença (KRAFFT-EBING, 1965).
Essa visão influenciou não só a psiquiatria, mas também a psicologia clínica nascente, que passou a tratar a homossexualidade como uma forma de transtorno psicossexual.
Quando amar virou motivo de internação
Durante décadas, pessoas homossexuais foram diagnosticadas como portadoras de distúrbios mentais. A American Psychiatric Association (APA) classificou a homossexualidade como “transtorno sociopático da personalidade” no seu primeiro Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o famoso DSM-I, publicado em 1952.
Isso teve consequências devastadoras: internações compulsórias, “curas” forçadas e a legitimação de práticas clínicas de correção, como:
- Eletroconvulsoterapia (eletrochoques)
- Terapias aversivas com indução ao vômito ou choques ao ver imagens homoeróticas
- Hormonoterapia, com aplicação de testosterona ou estrógenos
- Cirurgias cerebrais, como a lobotomia em casos extremos
Esses procedimentos foram aplicados com base no ideal de “normalização”, e muitas vezes sob o guarda-chuva de uma “ciência” comprometida com a manutenção da ordem moral e da heterossexualidade compulsória.
A virada histórica: quando a resistência venceu a patologização
A partir dos anos 1960, a luta por direitos civis, o movimento feminista e os protestos LGBTQIA+ ganharam força, como, por exemplo, o levante de Stonewall (1969), marco da resistência queer nos EUA.
Ativistas organizados a movimentos sociais e políticos passaram a questionar abertamente os saberes médicos e psicológicos, exigindo a retirada da homossexualidade dos manuais diagnósticos. O resultado foi a despatologização oficial da homossexualidade em 1973, quando a APA removeu o diagnóstico do DSM, após intensos protestos, ocupações de congressos e disputas internas (DRESCHER, 2015).
No Brasil, só em 1999 o Conselho Federal de Psicologia (CFP) publicou uma resolução que proíbe psicólogas e psicólogos de oferecerem terapias de “reversão sexual”, reconhecendo o direito à livre orientação sexual (CFP, 1999).

O que a psicologia histórico-cultural tem a ver com isso?
Na perspectiva histórico-cultural, inspirada por Lev Vigotski, entendemos que a mente e os afetos são construções sociais e históricas, e não dados naturais ou inatos. Isso significa que as formas como sentimos, nos relacionamos e desejamos estão sempre atravessadas pelas normas culturais, pelas instituições e pelo contexto político.
Nesse sentido, a patologização da homossexualidade não é um erro clínico isolado, mas uma consequência lógica de uma ciência comprometida com os valores de uma sociedade que naturalizava o patriarcado, a heterossexualidade compulsória e a moral cristã-burguesa.
Essa crítica também dialoga com os estudos de Michel Foucault, que nos mostra como a sexualidade foi capturada por saberes disciplinares (como a medicina e a psicologia) que não apenas reprimiam, mas produziam sujeitos — como o “homossexual” — para fins de vigilância e controle (FOUCAULT, 1988).
Por que precisamos contar essa história?
Porque o passado da psicologia ainda reverbera hoje em discursos e práticas que continuam tentando “corrigir” identidades não normativas. A proibição da terapia de conversão, por exemplo, ainda é desafiada por setores religiosos conservadores. Além disso, a discriminação institucional, o preconceito e a negligência continuam marcando a experiência de pessoas LGBTQIAPN+ nos serviços de saúde mental.
Contar essa história é um ato de resistência. É uma forma de reconstruir a psicologia como campo ético, político e comprometido com a liberdade, a escuta e o respeito à diversidade.

CFP – CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP n.º 001/1999: estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual. Brasília: CFP, 1999. Disponível em: https://site.cfp.org.br/legislacao/resolucao-no-199-de-22-de-marco-de-1999/. Acesso em: 19 maio 2025.
DRESCHER, Jack. Out of DSM: Depathologizing Homosexuality. Behavioral Sciences, v. 5, n. 4, p. 565–575, 2015.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
KRAFFT-EBING, Richard von. Psychopathia sexualis. New York: G.P. Putnam’s Sons, 1965.
VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.