Psicoterapia histórico-cultural: aplicação clínica dessa abordagem

Psicoterapia histórico-cultural: como se aplica ao contexto de atendimento clínico?

A teoria do desenvolvimento de Vigotski é abrangente e detalhada, oferecendo uma base para interpretar diversas áreas da psicologia. Ao destacar a formação social dos processos humanos, ele nos capacita a compreender a experiência humana em uma variedade de contextos de vida.

No entanto, há desafios significativos para acessar sua obra. Sua morte prematura, enquanto ainda aprofundava seus estudos sobre emoções, é um exemplo dessas dificuldades, que também incluem a escassez de acesso a obras recentemente publicadas, mesmo na Rússia. Isso tem tornado a prática da psicoterapia histórico-cultural parecer inatingível para muitas pessoas.

Além disso, as obras de Vigotski foram proibidas na União Soviética por quase duas décadas, e muitas traduções para outros países foram censuradas ou distorcidas para esconder o socialismo presente em suas ideias.

Apesar desses desafios, houve avanços significativos nos últimos anos no Brasil e no mundo todo, fortalecendo o legado de Vigotski e de outros psicólogos soviéticos que se baseiam na teoria de Marx.

Com um acesso maior e estudos mais aprofundados sobre a psicologia histórico-cultural, torna-se claro que essa abordagem tem aplicabilidade em diversos campos profissionais, incluindo a clínica psicológica. Ademais, adotar a teoria histórico-cultural na psicoterapia nos permite transcender os modelos hegemônicos de saúde mental, considerando o adoecimento como um processo psicossocial e construindo uma prática crítica e marxista.

A teoria de Vigotski não se restringe mais apenas a contextos educacionais ou comunitários, como era amplamente concebido por muitos anos no Brasil. Pelo contrário, Vigotski e seus colaboradores nos oferecem uma teoria abrangente que pode ser aplicada em uma variedade de cenários.

Isso inclui não apenas ambientes educacionais, mas também organizações, contextos de saúde pública, hospitais, instituições diversas e até mesmo na prática clínica privada. Essa amplitude de aplicação destaca a versatilidade e a relevância contínua da teoria de Vigotski em diferentes domínios da vida humana e da prática profissional.

Psicologia Histórico-Cultural na clínica: é possível?

A partir dos princípios do materialismo histórico-dialético, Lev Vigotski estabeleceu a relação intrínseca entre sociedade e indivíduo, enfatizando que o social não se limita apenas ao coletivo, mas permeia cada indivíduo singularmente.

Além disso, Vigotski conduziu estudos clínicos com pacientes que sofriam de afasia, esquizofrenia, Alzheimer, Parkinson e doença de Pick. Essas experiências clínicas o levaram a desenvolver um interesse crescente em questões relacionadas à saúde mental e às emoções, o que se tornou uma área de foco cada vez maior em seus últimos anos de vida.

Um dos conceitos centrais na psicoterapia histórico-cultural é o de funções psicológicas superiores (FPS).

Funções Psicológicas Superiores na Psicoterapia Histórico-Cultural

Vigotski distingue essas funções das funções elementares. As funções psíquicas elementares têm sua origem na biologia e são compartilhadas tanto por humanos quanto por animais. Elas são influenciadas pelo ambiente externo e são caracterizadas por ações involuntárias ou reflexas, bem como por reações imediatas ou automáticas.

Por outro lado, as funções psicológicas superiores têm origem social e são exclusivas dos seres humanos. Elas são marcadas por ações mediadas e intencionais, refletindo a influência da cultura e da sociedade na mente humana. Essa distinção fundamental destaca a importância do contexto social na formação das capacidades mentais humanas, conforme delineado pela perspectiva histórico-cultural de Vigotski.

O desenvolvimento das funções psicológicas superiores (FPS) é resultado da interação entre fatores biológicos e culturais, e é o cérebro que as manifesta. Isso estabelece uma relação dialética entre biologia e cultura: as FPS não têm sua origem apenas em processos biológicos do cérebro, mas são também influenciadas pela cultura.

Assim, o desenvolvimento do cérebro humano é moldado pela cultura. Isso fica evidente na filogênese da espécie humana com o surgimento do trabalho e da linguagem, que transformam todas as nossas funções psicológicas, diferenciando-nos dos outros animais. Essa interação complexa entre biologia e cultura demonstra como a formação das FPS é intrinsecamente ligada à experiência humana e à evolução cultural.

Como funciona a psicoterapia histórico-cultural e como são os atendimentos?

Psicoterapia Histórico-Cultural no tratamento de patologias

Não devemos esquecer que o psiquismo humano é uma representação subjetiva da realidade objetiva, ou seja, uma interpretação elaborada pela nossa consciência a partir do mundo material e das interações que ocorrem nele.

Nesse contexto, o desenvolvimento das funções psicológicas superiores influencia diretamente a clareza da imagem que formamos do ambiente ao nosso redor. É comum que em estados patológicos do desenvolvimento psíquico, como nos transtornos ansiosos ou nos transtornos de humor, ocorra uma desorganização das FPS.

Com um psiquismo desorganizado e desarticulado, nossa interação com o mundo tende a se tornar patológica, levando-nos a atribuir interpretações distorcidas à realidade e aos nossos relacionamentos interpessoais, como defende Zeigarnik, criadora da patopsicologia.

Portanto, na psicoterapia histórico-cultural, é fundamental priorizar uma intervenção psicológica que busque promover a saúde e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Isso envolve auxiliar o indivíduo a alcançar condições para regular sua própria conduta e comportamento de forma autônoma através de diversos instrumentos, incluindo a higiene do sono.

A psicoterapia histórico-cultural propõe ainda a compreensão do desenvolvimento cultural como um aspecto fundamental para dois conceitos-chave: mediação e internalização/conversão/apropriação.

Essa teoria destaca que o desenvolvimento humano ocorre através da mediação. Desde o nascimento, somos potenciais seres humanos, cujo desenvolvimento depende das interações com outros indivíduos e com o ambiente cultural em que estamos inseridos.

Mediação na Psicoterapia Histórico-Cultural

Segundo Vigotski, a mediação é a introdução de um elemento intermediário na relação entre o ser humano e o mundo. Antes da cultura, a pessoa e o mundo seriam como ilhas separadas. A cultura cria um espaço simbólico que conecta essas ilhas por meio de uma ponte — a mediação — permitindo que o indivíduo simbolize e interprete o mundo.

É através da mediação que nos relacionamos com o ambiente. Não acessamos diretamente os objetos, mas sim sistemas simbólicos que representam a realidade. Assim, os signos e instrumentos são fundamentais para nosso contato com a cultura. Como mencionado anteriormente, a linguagem desempenha um papel central nesse processo, servindo como principal mediador no desenvolvimento humano ao organizar os signos em estruturas complexas.

O contato da criança com o mundo não ocorre de forma direta, mas é mediado por processos sociais e culturais. Esses processos desempenham um papel crucial no desenvolvimento infantil, permitindo que ela se integre à linguagem e aprimore suas funções psicológicas superiores.

Apropriação, internalização e conversão na Psicoterapia Histórico-Cultural

A apropriação, internalização ou conversão da cultura exemplifica a lei geral do desenvolvimento proposta por Vigotski: segundo essa lei, toda função psicológica começa como uma experiência externa para, em seguida, ser internalizada.

Por exemplo, a linguagem falada surge a partir da interação com outras pessoas e inicialmente é dirigida para o ambiente externo antes de ser internalizada e usada como meio de regulação do próprio comportamento. Essa compreensão ressalta a importância dos processos de mediação social e cultural no desenvolvimento humano.

Dessa forma, a internalização, conversão ou apropriação se refere ao processo pelo qual o sujeito transforma e incorpora algo que ocorre nas relações interpessoais. É a reconstrução interna de uma operação externa.

Esse processo não é simplesmente uma transferência passiva do externo para o interno, mas sim um processo ativo e complexo no qual o mundo interno é moldado através da elaboração singular das experiências.

A apropriação não é um ato passivo; ao contrário, é influenciada pelos interesses individuais, pelas relações estabelecidas com outros conhecimentos, pelos afetos e pelas condições do contexto material.

Ao longo da vida, passamos por experiências e atribuímos significado a elas, em uma relação dialética com o mundo, internalizando assim o desenvolvimento. Esse processo demonstra a interação contínua entre o sujeito e o ambiente, evidenciando como a construção do conhecimento e do desenvolvimento ocorre de maneira dinâmica e individualizada.

O desenvolvimento na Psicoterapia Histórico-Cultural

A zona de desenvolvimento proximal (ZDP) representa processos cognitivos que estão prestes a se desenvolverem, podendo ser facilitados pela mediação de um indivíduo mais experiente, como um psicólogo clínico.

No entanto, o conceito de ZDP vai além das interpretações pedagógicas tradicionais, abrangendo um espaço social de trocas afetivas, cognitivas e de conflitos de interesses. Isso significa que a ZDP não se limita apenas ao que uma criança pode fazer com ajuda, mas engloba uma dinâmica complexa de interações entre pessoas em diferentes contextos e condições.

Essa compreensão ressalta a importância da ZDP na prática clínica. A clínica histórico-cultural é vista como um ambiente de desenvolvimento, no qual a relação entre terapeuta e paciente tem o potencial de mediar o desenvolvimento das funções psicológicas e a forma como elas se relacionam dentro da dinâmica psíquica.

Vigotski identificou várias formas de ocorrer a ZDP, incluindo dar pistas para a criança resolver uma atividade, iniciar uma solução e permitir que ela a continue, ou observar a criança resolver problemas em colaboração com outras crianças.

Nesse contexto, a imitação desempenha um papel crucial na ZDP. Quando uma criança imita alguém, ela está agindo em um nível mais avançado do que suas habilidades atuais permitem. A imitação não se limita à simples reprodução, mas é vista como uma oportunidade de compreender, aprender e reinventar.

Onde encontrar atendimento de psicoterapia histórico-cultural?

Sofrimento e alienação na abordagem histórico-cultural

A privação de condições materiais de vida e o acesso limitado à cultura historicamente organizada são fatores que podem desencadear processos de desgaste e angústia psicológica.

Esses aspectos contribuem para que a pessoa tenha uma menor consciência de seus próprios processos mentais e de suas possibilidades. Na perspectiva da psicologia histórico-cultural, especialmente na área da patopsicologia, entende-se que em situações de angústia psicológica, o comportamento tende a ser menos mediado, menos orientado por motivações de longo prazo e mais impulsivo.

Nessa abordagem, o sofrimento é considerado como resultado da interação entre a história única do indivíduo (ontogênese) e os fatores macroestruturais que moldam a personalidade, como os aspectos políticos, econômicos e sociais do contexto em que o sujeito está inserido, incluindo sua classe social.

Portanto, quanto mais precárias forem as condições de vida e as relações sociais em que o indivíduo está envolvido, maiores são os elementos que podem gerar sofrimento e limitar seu desenvolvimento.

Atuação do psicólogo na psicoterapia histórico-cultural

Na psicoterapia histórico-cultural, o psicólogo que adota essa abordagem desempenha um papel de investigação profunda dos processos psicológicos. Ele trabalha em colaboração com o paciente para estabelecer conexões significativas, indo além da simples descrição dos sintomas, sofrimentos e comportamentos.

A psicoterapia histórico-cultural busca compreender a origem desses aspectos na cultura e nas relações sociais do indivíduo. Em vez de se limitar a tratar os sintomas de forma isolada, o psicólogo histórico-cultural busca entender como esses sintomas se relacionam com a história única do paciente, sua inserção na sociedade e as dinâmicas culturais que o cercam. Isso permite uma compreensão mais profunda e contextualizada dos desafios enfrentados pelo paciente, possibilitando um trabalho terapêutico mais eficaz e significativo.

A importância da interação e da oferta de elementos mediadores na psicoterapia histórico-cultural nos leva a compreender que o papel do psicólogo é essencialmente intervencionista. Na terapia, é por meio dessa mediação que ocorre o desenvolvimento do indivíduo. Portanto, é crucial que as mediações propostas sejam intencionais, baseadas no vínculo terapêutico e na responsabilidade técnica e ética de cada processo.

A abordagem histórico-cultural na clínica destaca-se por ser dialógica, onde o terapeuta realiza perguntas, apresenta signos e instrumentos, contribuindo para a criação de novas possibilidades terapêuticas.

Esse ambiente terapêutico é entendido como um espaço de mediação, cujo objetivo é promover transformação e autonomia. Isso implica em ajudar o indivíduo a fortalecer sua capacidade de autorregulação e fornecer ferramentas e signos mediadores para exercer suas funções psicológicas superiores de forma voluntária.

É importante ressaltar que, na perspectiva histórico-cultural, a tomada de consciência não é suficiente para gerar processos de saúde. A vida material determina a consciência, conforme postulado por Marx e, consequentemente, por Vigotski.

Portanto, a psicoterapia histórico-cultural também é uma intervenção política, partindo da realidade material do indivíduo para ampliar sua consciência sobre as limitações e potencialidades geradas pela cultura.

Para Vigotski, a liberdade humana não significa estar acima das necessidades ou das leis da natureza, mas sim ter a capacidade de compreender a situação em que se encontra e tomar decisões a partir disso.

Assim, na psicoterapia histórico-cultural, não buscamos uma revolução, uma “cura” ou uma independência irreal das condições externas, mas sim o fortalecimento do indivíduo para lidar efetivamente com sua realidade. Isso demanda ir além da simples tomada de consciência, envolvendo um processo de desenvolvimento e capacitação para a ação consciente e assertiva.

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Raphael Granucci Pequeno
Raphael Granucci Pequeno

Psicólogo clínico da abordagem histórico-cultural, escritor e pesquisador

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