A importância da psicoterapia para trabalhadores se mostra quando analisamos o sofrimento psíquico entre brasileiros, que atingiu níveis alarmantes. Em março de 2025, o Brasil registrou o maior número de afastamentos por transtornos como ansiedade e depressão dos últimos 10 anos, segundo dados do INSS divulgados pelo portal G1 (2025).
Essa explosão de diagnósticos aponta para um adoecimento que é, antes de tudo, socialmente determinado. Não se trata apenas de indivíduos “fragilizados”, mas de uma sociedade que impõe condições de vida e trabalho cada vez mais desumanas.
Nesse cenário, é fundamental repensar o papel da psicoterapia. A psicologia histórico-cultural, fundada por Lev S. Vigotski e desenvolvida por autores como Leontiev e Luria, oferece uma abordagem teórico-metodológica capaz de compreender o sofrimento não como falha do indivíduo, mas como manifestação de contradições sociais internalizadas. Assim, este artigo propõe refletir sobre como deve ser a psicoterapia voltada aos trabalhadores no Brasil, a partir de uma prática crítica, dialógica e transformadora.
O sofrimento psíquico dos trabalhadores brasileiros: entre produtividade e esgotamento
O modelo de trabalho contemporâneo, sustentado por valores neoliberais, exige desempenho máximo, resiliência incondicional e disponibilidade total. A precarização do trabalho, o desemprego estrutural, a sobrecarga e o enfraquecimento de vínculos coletivos criam um ambiente de constante tensão e insegurança psíquica.
A reportagem do G1 (2025) destaca que os afastamentos por transtornos mentais cresceram 196% em uma década, sendo a ansiedade e a depressão os principais diagnósticos. Porém, o que se apresenta como quadro clínico individual é, muitas vezes, a forma como o sofrimento social se expressa psiquicamente. Os sintomas são apenas a ponta do iceberg.
O psicólogo clínico que oferece psicoterapia para trabalhadores não pode ignorar esse contexto. A clínica deve ser um espaço que não apenas acolha a dor, mas também ajude o sujeito a historicizá-la, compreendê-la e transformá-la em prática consciente. É nesse ponto que a psicologia histórico-cultural oferece contribuições cruciais.
Psicologia histórico-cultural: fundamentos para uma clínica crítica do trabalho
A psicologia histórico-cultural compreende o ser humano como um ser histórico, ativo e constituído nas relações sociais mediadas. O psiquismo, para Vigotski (1996), não é um dado natural, mas um produto da atividade social e do uso de instrumentos simbólicos — especialmente a linguagem. Isso significa que o sofrimento psíquico não pode ser separado das condições concretas de vida, da cultura, da ideologia e das relações de poder que atravessam o sujeito.
Como aponta Melo et al. (2018)., a psicoterapia, nessa perspectiva, deve ser entendida como uma atividade de mediação que possibilite ao sujeito apropriar-se de sua história, atribuir sentidos e elaborar estratégias para transformar sua realidade. Assim, o sofrimento não é patologizado, mas compreendido como expressão da vida concreta de um sujeito inserido em uma sociedade marcada por contradições.
A escuta clínica, nesse modelo, não se reduz a interpretar sintomas ou aplicar protocolos: ela se compromete com a totalidade da experiência do sujeito, entendendo que o sofrimento no trabalho tem raízes nas formas como o trabalho está organizado, nas exigências de produtividade e na perda de sentido da atividade.

A clínica como espaço de resistência: escutar, significar, transformar
O lugar da psicoterapia para trabalhadores é também o de resistência ao discurso dominante que individualiza o sofrimento. A medicalização crescente, os discursos de “inteligência emocional” e “gestão do estresse” deslocam o problema para o indivíduo, como se ele fosse o único responsável por se adaptar a um mundo em colapso.
Uma psicoterapia fundamentada na psicologia histórico-cultural opera em outra direção: ela busca resgatar o sujeito de sua culpabilização, devolvendo-lhe a capacidade crítica de compreender seu sofrimento como legítimo e historicamente determinado. Nesse processo, o terapeuta atua como mediador que escuta ativamente, propõe articulações com o contexto e ajuda o sujeito a construir novos sentidos para sua existência.
Como destacam Melo et al. (2018)., esse tipo de clínica tem um compromisso ético-político com a emancipação. Ela não oferece conselhos prontos, mas estimula a reflexão sobre os sentidos atribuídos à vida e ao trabalho, abrindo espaço para que o sujeito reorganize sua história de forma mais potente e consciente.
A linguagem e a construção da subjetividade: narrar para existir
Na psicologia histórico-cultural, a linguagem não é apenas um meio de comunicação, mas um instrumento fundamental para a constituição do sujeito e de sua consciência. Vigotski (1996) demonstrou que é por meio da linguagem — internalizada nas interações sociais — que o ser humano desenvolve suas funções psíquicas superiores, como o pensamento, a memória voluntária, a atenção dirigida e, especialmente, a capacidade de refletir sobre si mesmo.
Isso significa que a linguagem é o principal mediador da subjetividade: é através dela que o sujeito organiza suas experiências, elabora sentidos sobre o mundo e sobre si mesmo, articula memórias e afetos, e transforma vivências dispersas em narrativas coerentes. Quando falamos de sofrimento psíquico, falar sobre si deixa de ser apenas um ato de expressão — passa a ser um ato de transformação subjetiva.
Narrar o sofrimento é construir sentido
No contexto da psicoterapia voltada para trabalhadores, compreender essa função mediadora da linguagem é fundamental. O trabalhador que chega à clínica muitas vezes não possui os recursos simbólicos para nomear seu sofrimento, pois este se apresenta de forma difusa: um cansaço constante, uma falta de motivação, uma angústia que parece não ter causa. Ele sabe que está mal, mas não consegue explicar por quê.
A clínica histórico-cultural atua como espaço de mediação simbólica, em que o sujeito é incentivado a narrar sua história, atribuir significados às suas experiências, reconhecer padrões, contradições e desejos silenciados. Esse processo não é guiado por modelos prontos de interpretação (como tipologias, rótulos diagnósticos ou arquétipos), mas pela escuta ativa, dialógica e crítica do terapeuta, que contribui para que o sujeito reconstrua sua trajetória de forma mais consciente e potente.
Narrar o sofrimento, portanto, é um ato político-existencial: é reconhecer que o que se sente não é fracasso individual, mas muitas vezes uma forma legítima de resistência às violências do mundo do trabalho, à lógica produtivista e à perda de sentido na vida cotidiana.
O homem não apenas vive, mas dá sentido ao que vive. E esse sentido é sempre construído nas relações com o outro, nas mediações da linguagem e da cultura (MELO et al., 2018).
A escuta como prática de libertação simbólica
Nesse modelo clínico, o terapeuta não atua como quem “decifra” o sujeito, mas como alguém que ajuda a organizar simbolicamente a experiência vivida, oferecendo perguntas, hipóteses e interpretações abertas, sempre respeitando a historicidade e o movimento interno de quem fala.
A escuta histórico-cultural é uma escuta implicada, que reconhece a dor, mas também ajuda a situá-la nas tramas sociais que a produziram. Por isso, falar sobre a exaustão no trabalho, sobre o medo de não ser produtivo, sobre o sentimento de inutilidade ou culpa não é “reclamar”: é começar a reconhecer e enfrentar uma realidade que adoece o sujeito ao mesmo tempo que o responsabiliza por esse adoecimento.
Nesse sentido, a fala na psicoterapia para trabalhadores não é só catarse ou desabafo — é construção de consciência, é apropriação simbólica da vida, é reconfiguração da subjetividade.
Da palavra à ação: linguagem como motor de transformação
Ao narrar sua história, o sujeito não apenas compreende melhor quem é, mas também se vê como alguém capaz de agir sobre o mundo. Essa é uma das grandes potências da psicoterapia histórico-cultural: ao favorecer a linguagem como meio de elaboração, ela retira o sujeito da paralisia produzida pelo sofrimento inominável, e o devolve ao campo da ação e da transformação.
Falar, nomear, refletir — tudo isso é condição para desejar e mudar. E para trabalhadores que se veem muitas vezes esgotados, desvalorizados e sem voz, ser escutado e nomear sua experiência de forma legítima é um primeiro passo para reconstruir sua potência existencial.
Psicoterapia para trabalhadores como prática social e política
A psicoterapia para trabalhadores, inspirada na psicologia histórico-cultural, não se limita ao consultório. Ela é, também, um gesto político. Quando se escuta o sofrimento como expressão de desigualdade, quando se legitima o cansaço, quando se nomeia o adoecimento como resultado das contradições do capital, está-se resistindo a uma lógica que transforma tudo em mercadoria — inclusive a saúde mental.
Isso não significa substituir a clínica pela militância, mas reconhecer que todo sofrimento tem um fundo histórico e social. Como afirma a própria Vigotski (1996), compreender o desenvolvimento humano exige considerar o sujeito em sua totalidade: biológica, psíquica, histórica, cultural e social.
Portanto, a psicoterapia com trabalhadores deve ser uma prática que escuta a dor, mas que também oferece ferramentas para compreendê-la e superá-la coletivamente.
A crise de saúde mental dos trabalhadores no Brasil exige mais do que diagnósticos e receitas. Ela exige uma escuta crítica, uma clínica comprometida com a história do sujeito e uma psicologia que compreenda o sofrimento como resultado das contradições sociais vividas. A psicologia histórico-cultural, nesse contexto, não apenas explica o adoecimento — ela propõe uma forma de enfrentá-lo.
Mais do que adaptá-lo à realidade, a psicoterapia para trabalhadores precisa ajudá-lo a compreender o mundo que o adoece e, sempre que possível, participar de sua transformação.

Referências
G1. Crise de saúde mental: Brasil tem maior número de afastamentos por ansiedade e depressão em 10 anos. G1 – Trabalho e Carreira, 10 mar. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/03/10/crise-de-saude-mental-brasil-tem-maior-numero-de-afastamentos-por-ansiedade-e-depressao-em-10-anos.ghtml. Acesso em: 28 maio 2025.
MELO, Pamella Beserra de; BRITO, Mariana Aguiar Alcântara de; AQUINO, Cássio Adriano Braz de; COLAÇO, Veriana de Fátima Rodrigues. Contribuições da psicologia histórico-cultural para o poder de agir do trabalhador. Revista de Psicologia, v. 9, n. 2, p. 96-106, jul./dez. 2018. Universidade Federal do Ceará.
VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1996.