Historicamente, a transexualidade foi compreendida pela psicologia dentro de uma matriz patologizante, marcada pela medicalização da diferença e pela tentativa de enquadrar as vivências trans em modelos normativos de gênero e sexualidade.
Contudo, à luz das transformações sociais e dos avanços nas concepções de saúde, gênero e subjetividade, a psicologia brasileira — especialmente após as resoluções do Conselho Federal de Psicologia (CFP) — tem sido convocada a reformular suas práticas, assumindo uma postura ética, não discriminatória e promotora de direitos humanos.
Essas mudanças são urgentes quando consideramos a realidade da população trans no Brasil. De acordo com levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) de 2023, o Brasil é, pelo 15º ano consecutivo, o país que mais mata pessoas trans no mundo.
Apenas 4% dessa população consegue concluir o ensino superior, enquanto 72% estão em situação de vulnerabilidade socioeconômica e 90% das travestis e mulheres trans adultas acabam na prostituição como única alternativa de sobrevivência (SYNERGIA CONSULTORIA, 2023). Esses dados não expressam uma “condição individual”, mas revelam a estrutura social transfóbica que produz sofrimento psíquico, exclusão e mortes evitáveis.
Diante desse contexto, o compromisso ético da psicologia não pode ser neutro: é necessário desnaturalizar os discursos patologizantes, romper com práticas normativas e construir escutas clínicas comprometidas com o reconhecimento da diversidade de gênero.
A patologização da transexualidade: uma herança histórica
Durante o século XX, o discurso médico-psiquiátrico classificava a transexualidade como transtorno mental, como evidenciado no DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e na CID (Classificação Internacional de Doenças). A noção de “transtorno de identidade de gênero”, presente nessas classificações, sustentava a ideia de que a incongruência entre o sexo atribuído ao nascimento e a identidade de gênero era expressão de uma anomalia a ser corrigida (BENTO, 2006).
A patologização foi funcional a uma lógica normativa que restringia os modos legítimos de existência de gênero e justificava práticas de controle, como cirurgias compulsórias, tratamentos hormonais sem consentimento ou terapias reparativas. Além disso, os saberes psicológicos frequentemente foram utilizados como instrumentos de regulação social, como aponta Foucault (1999), alimentando o ideal de um corpo coerente com o gênero designado biologicamente.
Despatologização da transexualidade e a virada ética na psicologia
A partir dos anos 2000, movimentos sociais trans e setores progressistas da academia começaram a questionar abertamente esse modelo. No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia deu um passo decisivo com a publicação da Resolução CFP n.º 01/2018, que orienta os profissionais da psicologia a respeitarem as expressões de gênero e a identidade de pessoas trans, travestis e não binárias, repudiando qualquer prática que pretenda “redirecionar” tais expressões.
A despatologização, nesse sentido, não significa ignorar o sofrimento psíquico que pode acometer sujeitos trans, mas compreender que esse sofrimento decorre muito mais da exclusão social, da violência institucional e da negação de direitos do que de qualquer desvio intrínseco à identidade trans (COSTA et al., 2019).
Segundo a pesquisa de Silva e Pereira (2019), publicada na Psicologia em Revista, o sofrimento de pessoas trans em contextos terapêuticos não é resultado da identidade em si, mas das formas normativas com que a psicologia tradicionalmente se relacionou com essas identidades, reforçando estigmas ao invés de produzir acolhimento.

Transexualidades e pluralidade: identidade de gênero além do binarismo
A categoria “transexualidade” não pode ser pensada de modo homogêneo. As experiências trans são múltiplas e atravessadas por questões de raça, classe, território e expressão de gênero. Nesse sentido, é fundamental distinguir, por exemplo:
- Transexualidades binárias, em que a pessoa se identifica como homem ou mulher, diferente do sexo designado ao nascimento;
- Identidades não binárias, que se recusam a se enquadrar nas categorias “homem” ou “mulher”, afirmando modos fluídos, híbridos ou alternativos de ser.
No artigo de Bento e Pelúcio (2012), publicado na Estudos Feministas, as autoras destacam que a construção de subjetividades trans não está limitada a uma trajetória de “transição” para o gênero oposto, mas envolve uma crítica radical à lógica binária de gênero. A patologização, ao impor uma narrativa linear e clínica da transição, apaga essas experiências e inviabiliza o reconhecimento da diversidade de modos de viver o corpo e o desejo.
O papel do psicólogo no atendimento a pessoas trans
À luz da psicologia histórico-cultural, compreendemos que a subjetividade é produzida nas relações sociais mediadas por linguagem e cultura (VIGOTSKI, 2000). Portanto, o papel do psicólogo não é afirmar essências, mas compreender os modos singulares como os sujeitos produzem sentido sobre si e o mundo — inclusive sobre seu gênero.
Dessa forma, o atendimento psicológico a pessoas trans deve se pautar pelos seguintes princípios:
- Acolhimento ético e escuta ativa, reconhecendo o sujeito como protagonista de sua história e respeitando sua autodeclaração de gênero;
- Produção de reconhecimento e pertencimento, combatendo os efeitos psíquicos da exclusão social;
- Atuação política e social, contribuindo para a garantia de direitos das pessoas trans em saúde, educação e trabalho;
- Rejeição a qualquer forma de “terapia de conversão” ou de correção da identidade de gênero.
Como afirmam Nascimento e Modesto (2021), em artigo na Psicologia: Ciência e Profissão, o psicólogo deve atuar como um agente de transformação social, intervindo não no sentido de adaptar o sujeito à norma, mas de transformar os contextos opressivos que geram sofrimento psíquico.
A contribuição do marxismo queer para a psicologia e a despatologização das transexualidades
O marxismo queer é uma vertente crítica que une a análise materialista da história — proposta por Karl Marx — com uma crítica radical à normatividade de gênero e sexualidade. Autores como Mario Mieli, Kevin Floyd, Peter Drucker e Jules Joanne Gleeson, por exemplo, argumentam que a heterossexualidade compulsória, o binarismo de gênero e a cisnormatividade são elementos estruturais da ordem capitalista, fundamentais para a manutenção da divisão sexual do trabalho, da família nuclear e da reprodução da força de trabalho (DRUCKER, 2015; FLOYD, 2009).
Para o marxismo queer, as normas de gênero e sexualidade não são “naturais”, mas históricas, ideológicas e funcionais ao sistema econômico dominante. A exclusão de corpos e identidades dissidentes (como os das pessoas trans) serve para reforçar o controle social e legitimar desigualdades estruturais.
No contexto brasileiro, onde 90% das mulheres trans adultas estão na prostituição e mais de 70% da população trans está desempregada ou em trabalhos precários (SYNERGIA CONSULTORIA, 2023), a análise marxista queer revela que a transfobia não é apenas um “preconceito”, mas uma opressão estruturante do capitalismo periférico, atravessada por raça, classe, colonialismo e normatividade cis-hetero.
Além disso, autores marxistas queer como Jules Joanne Gleeson e Elle O’Rourke (2021) têm argumentado que a multiplicação das identidades de gênero (incluindo as não binárias) é resultado tanto de lutas históricas quanto de contradições internas do sistema capitalista, que precisa de sujeitos flexíveis, adaptáveis e produtivos — ao mesmo tempo em que reforça estruturas conservadoras (família, escola, Igreja) que impedem a emancipação plena.
Implicações para a psicologia
Para uma psicologia histórico-cultural e comprometida com o marxismo queer:
- O sofrimento psíquico de pessoas trans deve ser compreendido como efeito da contradição entre as formas de subjetivação dissidentes e uma estrutura social que as oprime, invisibiliza e mata.
- O papel do psicólogo não é “normalizar” ou “integrar” o sujeito trans à sociedade tal como ela é, mas atuar criticamente para transformar essa sociedade.
- O atendimento clínico deve se articular à luta por políticas públicas, trabalho digno, reconhecimento social e acesso à saúde e educação para pessoas trans.
Assim, a psicologia não pode ser neutra: ou reforça as normas que produzem sofrimento, ou se alia às lutas emancipatórias que visam superá-las.
O papel da psicologia nas vivências trans
A despatologização das transexualidades é um imperativo ético para a psicologia contemporânea. Mais do que um posicionamento técnico, trata-se de um compromisso com a dignidade humana, com a diversidade e com a construção de uma sociedade menos violenta.
Os dados sobre a população trans no Brasil revelam uma realidade alarmante de exclusão estrutural: grande parte das pessoas trans tem seu acesso à saúde, à educação e ao trabalho sistematicamente negado — o que, por sua vez, produz sofrimento psíquico, não por serem trans, mas por viverem em um mundo que nega sua existência.
A psicologia como um todo, e não apenas a abordagem histórico-cultural, nesse cenário, é chamada a assumir seu papel não como reguladora da norma, mas como promotora de práticas emancipatórias (SYNERGIA CONSULTORIA, 2023).
Ao romper com os paradigmas normativos do passado e se comprometer com os direitos humanos, a psicologia se reinventa como prática crítica e transformadora — e o psicólogo, como sujeito ético implicado na luta por justiça social.

Referências
BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
BENTO, Berenice; PELÚCIO, Larissa. Os muitos corpos de Claus e a performatividade do gênero. Estudos Feministas, v. 20, n. 2, p. 533-552, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/bvJMJJtLDKm3387YtgS54bw/. Acesso em: 3 jun. 2025.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução n.º 01/2018. Estabelece normas de atuação para psicólogas(os) em relação às pessoas transexuais e travestis. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/Resolução-CFP-nº-01-2018.pdf. Acesso em: 3 jun. 2025.
COSTA, Ana Paula et al. Acolhimento psicológico de travestis e transexuais no SUS: desafios e possibilidades. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 39, e191295, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/MgsxScRgNWtdkrmkptwDwBC/. Acesso em: 3 jun. 2025.
DRUCKER, Peter. Transgender Marxism. London: Pluto Press, 2015.
FLOYD, Kevin. The Reification of Desire: Toward a Queer Marxism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2009.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
GLEESON, Jules Joanne; O’ROURKE, Elle (org.). Transgender Marxism. London: Pluto Press, 2021.
NASCIMENTO, Maria da Consolação; MODESTO, Rosana. Transexualidade e subjetividade: o papel do psicólogo no acolhimento da diferença. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 41, e220694, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/. Acesso em: 3 jun. 2025.
SILVA, Caio César; PEREIRA, Paulo Roberto. Psicologia e a patologização das experiências trans: uma análise crítica. Psicologia em Revista, v. 25, n. 2, p. 568-586, 2019. Disponível em: https://periodicos.pucminas.br/psicologiaemrevista/article/view/15311/16589. Acesso em: 3 jun. 2025.
SYNERGIA CONSULTORIA. População trans no Brasil: dados e desafios. Fique por Dentro, 2023. Disponível em: https://www.synergiaconsultoria.com.br/fique-por-dentro/populacao-trans/. Acesso em: 3 jun. 2025.
VIGOTSKI, Lev S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2000.